O que é arquitetura? Arquitetura é ciência humana. É ciência exata. É projeto e é edifício. É arte e é poesia. É o jogo dos volumes sob a luz. É uma questão de escala. Ela canta. Encanta. Mas a arquitetura é, antes de tudo e sobretudo, cenário. É palco da vida cotidiana, o pano de fundo da história humana, real ou imaginária.
Este trabalho é uma Interpretação Cenográfica Virtual para o romance intitulado Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. O processo de sua produção passou por um estudo detalhado da obra e do autor, do contexto histórico e literário e do desenvolvimento de uma linguagem fundamentada em pesquisa estética e técnica da adaptação cenográfica e da mídia digital. A seguir, tenta-se explicar melhor o conceito de Interpretação Cenográfica Virtual.
O livro escolhido para este trabalho e a forma de apropriação do mesmo é de fundamental importância para tal. Trata-se de um romance fantástico, categorizado como Realismo Mágico, cuja narrativa está profundamente relacionada com o seu ambiente, o que o torna bastante interessante para o que se propõe nesse projeto. Apesar de todo o estudo sobre a narrativa em si, forma de construção literária, ambientação e correlações entre a obra e a vida do autor, toda essa informação está sujeita a uma interpretação pessoal das questões destacadas. Mais que uma tradução, trata-se de uma recriação do cenário do romance, que surge a partir da fusão do ambiente físico dos fatos e do psicológico dos personagens bem como do inconsciente coletivo.
Esse é um projeto cenográfico e não ilustrativo, como pode parecer por seu produto final ser bidimensional. Além de serem utilizadas técnicas tridimensionais na sua produção, a idéia é enfatizar o cenário físico-psicológico da trama, a história em si está presente através de elementos subjetivos. Não há intenção de contar a história, mas sim de passar a impressão visual que ela provoca. O trabalho foi desenvolvido sob o estudo de técnicas gráficas, mas com uma especial atenção à produção cênica, principalmente no que diz respeito à composição e climatação / iluminação. Nas palavras de Roland et Alii Barthes, sobre o discurso agregado à forma com que a história é contada e sobre a relação autor-espectador, referindo-se a obras literárias, mas perfeitamente aplicável ao caso: "A obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com a vida real. (...) Mas a obra é ao mesmo tempo um discurso: existe o narrador que relata a história, há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhecê-los."
A arte do século XXI não pode fugir à mídia digital. A realidade em que vivemos já é virtual, o mundo contemporâneo aceita com mais facilidade a arte digital pela suas características inatas de interação, de facilidade de divulgação, absorção rápida e dinâmica e também de sua efemeridade.
Pode-se definir o produto final deste trabalho como uma animação virtual interativa que apresenta conceitos importantes do livro e seu ambiente. Trata-se de uma apresentação figurativa das questões provocadas pela leitura, através de ambientes representativos cenografados utilizando-se técnicas diversas de grafismo digital em duas e três dimensões. Mais do que a fidelidade narrativa, pretende-se aqui uma comunhão da imagem com a história, do desenho e da palavra, arquitetura e homem. Entende-se por interpretação cenográfica, desse modo, o rompimento do limite objeto-mensagem. Se a arquitetura é cenário da vida é, ao mesmo tempo, protagonista.
Apesar da tentativa de se seguir a cronologia proposta inicialmente, o trabalho se desenvolveu em diversas vertentes concomitantes que serão brevemente explicadas a seguir.
Releitura e estudo do livro-base e da autobiografia do autor. Estudo sobre a história da Colômbia e sobre o Realismo Fantástico. Nessa etapa, buscou-se compreender todos os elementos que influenciaram na realização da obra, a fim de evitar uma análise superficial da mesma. Apesar disso, não foram consultadas critícas e análises específicas sobre o livro, mantendo o trabalho livre da influência direta de especialistas em análise literária, pois não era essa a sua finalidade.
A pesquisa gráfica fundamentou-se em diversas formas de artes visuais, com o foco no aspecto cênico que cada uma pode apresentar. Buscou-se referências em cenografia teatral, exposições, artes plásticas, artes gráficas, fotografia, ilustração, animação digital, websites, etc. Essa pesquisa se extendeu durante todo o processo do trabalho. Além da referência visual em si, a função dessa pesquisa foi de desenvolvimento de uma linguagem própria que pudesse fazer uma transposição do código escrito para a imagem dinâmica. O encaminhamento dessa pesquisa pode ser entendido através da bibliografia.
Finalizada e sonorizada a animação, iniciou-se a produção da apresentação. Criou-se um espaço de carga dramática, imerso em penumbra. Pequenos excertos do livro, escolhidos pela influência direta que tiveram na animação, vêm para dar uma dimensão da obra aos visitantes incautos, e complementar o clima de fantasia. A sonorização ambiente traz um trecho editado da narrativa em espanhol, combinado a uma composição de música vallenata, a música popular típica da Colômbia. O escuro, junto com os focos de luz, sinalizam e conduzem o olhar, e criam o silêncio visual que a montagem exige. A animação é exibida em uma estação composta de um totem que suporta um monitor LCD de 19'' em sintonia com a projeção na parede. Ressalta-se aqui que a animação se desenvolve de modo circular, ou seja, não existe começo ou final, e portanto o observador pode iniciá-la ou terminá-la em qualquer ponto.
