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secao 4!

Uma estranha aventura de Corbu Obu em Eldorado - um bang bang noir

 

Alexandre Hector Benoit

Vicente Gil Filho

Uma estranha aventura de Corbu Obu em Eldorado tem dois objetivos fundamentais que se relacionam. Por um lado nesta novela gráfica busco colocar toda a problemática do urbanismo moderno brasileiro em choque com o processo de barbarização crescente de nossas cidades e do próprio Brasil. Por outro lado, ao adotar a forma ficcional e, sobretudo, não essencialmente escrita, mas visual, busco colocar como questão se é possível transmitir um problema conceitual através de imagens.

BRASÍLIA, BRASIL E AS CIDADES EM RUÍNAS

A cada dia uma nova catástrofe anuncia o avanço da deterioração das cidades no Brasil e em escala mundial. As céticas projeções de Rem Koolhaas vão se concretizando com uma rapidez assustadora. Seus comentários de que 'não é Lagos (caótica megalópole africana) que chegará até nós, mas nós que chegaremos até Lagos" ou então de que a "última atividade pública que restou na cidade ocidental é o shopping", comentários carregados de sarcasmo, transformam-se em retratos fieis do cotidiano de nossas cidades.

Guerras, destruição da natureza, violência, ruínas e shopping são os elementos do urbanismo do laissez-faire da cidade do capital.

Diante desse quadro, o mesmo arquiteto holandês comentou se não era o momento de "voltarmos à audácia de Le Corbusier". Como não lembrar, porém, de que ainda jovem, Koolhaas escrevia textos ficcionais em que narrava a morte do modernismo? Eram textos apologéticos do urbanismo do laissez-faire (Delirius New York). Ou como não lembrar que mais recentemente quando veio ao Brasil propôs uma fotonovela barata "impressa em papel jornal e cores vibrantes" sobre Brasília para "dessacralizar o moderno"?

A reflexão de Koolhaas em que se coloca uma oposição entre o modernismo e a irracionalidade das metrópoles, hoje vai, ao meu ver, muito além de simples provocação. E este é um dos aspectos-chave do roteiro de Eldorado. Sobretudo o modernismo de Niemeyer em Brasília aspira a um projeto político e poético de uma nova sociedade. A linha curva, as formas livres de seus projetos assumem em Brasília características exemplares e universais de um impacto impressionante. Glauber Rocha, Caetano Veloso, José Celso Martinez Correa, diversos arquitetos e tantos outros artistas e intelectuais de uma geração, em seus escritos e produções artísticas, em certo sentido, comentam o significado importante de Brasília nas suas criações.

Brasília foi um forte símbolo de futuro para uma geração. Entretanto, o próprio Niemeyer em "Minha experiência em Brasília" se diz desapontado com o retrocesso que a cidade sofreu pouco tempo depois de sua construção, muito embora não esconda que ele mesmo por um momento se deixou levar pela imagem daquele símbolo.

Para mim, esse caráter simbólico de Brasília assume hoje novamente um valor importante. Precisa ser discutido e posto novamente em evidência. Sobretudo, diante do que ocorre em nossas cidades, após o esvaziamento dos vários (e todos os) projetos alternativos, planos, ideários e programas urbanísticos e políticos, planos pós-Brasília.

Em Eldorado busquei construir exatamente uma Brasília monumental, portadora de uma poética libertária, mas que estaria aprisionada. Deixei de lado o aspecto funcional da cidade, não se trata de mostrar se é bom (ou ruim) morar, circular em uma cidade setorizada, sem esquinas. Trata-se para mim de indicar que toda uma potencialidade cultural, urbanística e política do Brasil, contida nas formas de Brasília (como projeto de Niemeyer), está aprisionada. Brasília-projeto é como um grande Prometeu acorrentado.

A alegoria

Ainda do ponto de vista do conteúdo não visual do trabalho gostaria de comentar as citações que são correntes no roteiro de Eldorado.

Ao pensar Brasília-projeto enquanto esse símbolo de um futuro possível que não foi, ela mesma seria a portadora do ideário da cidade ideal, isto é, da cidade justa, bela, sem conflitos, a cidade além da história Ocidental. Ela mesma representaria a busca pela cidade dos homens livres.

Retomei uma discussão posta na revista Contravento 2, que contem elementos similares aos apresentados nesse roteiro, mas, sobretudo, retomei a relação de Brasília com passagens de A república de Platão. Os dizeres fundamentais "para que os homens fundam uma cidade?" aparecem no Livro II dessa obra, quando Sócrates inicia a sua construção em logos.

Também retiro de A república a passagem a respeito da alegoria da caverna, que aparece nas citações do "livro proibido" que chega em Eldorado pelas mãos de Obu e que Rosa lê.

Obu, desconhecendo o livro, apega-se a todo momento a um outro livro. Suas citações são de Maiakovski e Rimbaud, poetas malditos que fizeram a experiência do aborto do futuro e da poesia em suas obras e vidas.

Os dois poetas encarnam também o ímpeto revolucionário e anti-burguês (um deles vinculado à Comuna de Paris e o outro à Rev. Russa), ímpeto-pulsão necessários aos que se lançam na aventura de encontrar a cidade dos homens livres.

Portam eles em seu caráter e obras abortadas o olhar feroz que fulmina a arte burguesa.

Outras "citações"

Obu também tem muita semelhança com o Corto Maltese, personagem de H. Pratt que dispõe das mesmas características aventureiras de Rimbaud.

Estas e outras metáforas e alusões compõem um grande esforço da minha parte em construir, enquanto alegoria, uma critica à realidade de nossas cidades. Este recurso é uma opção ao trabalho meramente positivo que teria uma tese sobre o significado das formas de Niemeyer.

Aqui cabe recordar, também, o computador Alpha-60 do filme Alphaville de Godard: "talvez a realidade seja muito complexa para a transmissão oral. A lenda a recria sob uma forma que lhe permite correr o mundo".

A lenda alegórica, embora seja uma forma dramática e ficcional, pode perfeitamente ser portadora de uma proposição racional sobre a realidade, com já mostraram diversos filósofos, desde Platão. Como diz o personagem, as imagens podem ser formas mais eficientes que façam "correr o mundo".

Pelas imagens, como pelos traços de Niemeyer, pode-se abrir um caminho alternativo para um futuro que parece não-ser-(mais-possível).

 

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