o caso da favela Amadeu
Vanessa Prado Barroso
João Sette Whitaker Ferreira
Este trabalho trata de por em discussão o afastamento que ainda existe entre as políticas de gestão do solo e as políticas habitacionais, e estas com outras políticas setoriais, a partir da experiência em duas cidades latino-americanas - São Paulo e Santiago - e assim, refletir sobre os impactos que esse descolamento traz à qualidade da construção do hábitat para as famílias de mais baixa renda.
Na maioria dos casos, tanto no Brasil quanto no Chile, essas políticas caminham paralelamente, e mostram que nem no caso chileno, com uma maciça produção habitacional e novos instrumentos urbanísticos, nem no caso brasileiro, com significativos avanços na gestão do solo urbano e programas de urbanização e habitacionais mais sólidos, pode-se garantir a qualidade no ambiente construído caso se mantenha essa relação distante entre ambas políticas.
Na experiência chilena, foi interessante analisar os possíveis impactos que podem ocorrer em uma realidade na qual houve uma grande produção de moradias, principalmente durante os últimos trinta anos, capaz de diminuir substancialmente o déficit habitacional do país [1], mas que ao mesmo tempo não correspondeu, conforme estudos locais, a uma melhora na qualidade de vida nos assentamentos humanos precários.
O significativo aporte financeiro no Chile para políticas habitacionais não foi suficiente para garantir a qualidade do hábitat construído nesse país. Os problemas qualitativos, que afetam não somente o aspecto construtivo da moradia mas também o aspecto urbano e social nas escalas que abarcam o hábitat residencial, como o bairro/cidade, o entorno/vizinhança e a unidade/edifício, são conseqüência de uma política que mantém princípios originados no período militar (1973-1989), que são o adensamento, a concentração e a localização periférica das soluções habitacionais para os mais pobres, padrão aliás recorrente nos países de urbanização subdesenvolvida.
Da mesma maneira como se deu o repasse da construção e gestão das obras de moradia popular para as empresas construtoras, assim foi com a política de solo, subordinando a política pública de planejamento urbano à dinâmica privada uma vez que se deixou nas mãos de empresas privadas a definição da localização dos projetos.
A reação aos impactos urbanos e sociais causados por essa política compreendeu então, algumas mudanças importantes para o novo governo [2], que trazem tanto questões conceituais - com uma discussão aprofundada sobre hábitat residencial integral - como também na própria política de governo, que passa a reconhecer a urgência por mudanças nos objetivos da política habitacional, nos programas desenvolvidos, na forma de "caracterização" da pobreza através da Ficha Cas [3], em novos instrumentos urbanos.
No Brasil, as políticas habitacionais foram praticamente inexistentes até a metade do século XX, somente com respostas vindas da iniciativa privada através das vilas operárias e casas de aluguel, e a partir dos anos 50, ineficientes e excludentes, no que se refere a pouca responsabilidade em responder às crescentes necessidades habitacionais dos trabalhadores e sua conivência com a ocupação irregular de terras nas periferias.
Por isso, a questão do acesso à propriedade da terra está no cerne da enorme desigualdade sócio-espacial no país. A situação urbana atual reflete fisicamente essa desigualdade e decorre principalmente da expansão territorial descontrolada, baixa acessibilidade, construção periférica de conjuntos habitacionais populares, ocupação irregular em áreas de risco, segregação territorial e social, e históricos processos de gentrificação. Além desses impactos, o país possui um enorme déficit habitacional, fazendo com que a resposta informal ainda se mantenha como sua principal característica de urbanização.
Da população brasileira atual, estimada em aproximadamente 190 milhões de habitantes, 84,2% vivem em áreas urbanas do país, ou seja, 160 milhões de pessoas.[4] Apesar de que nos últimos vinte anos o vetor de crescimento populacional tenha se deslocado para a periferia das regiões metropolitanas e para cidades médias próximas a estes centros, o que se constata é uma manutenção da precariedade das condições de vida de grandes contingentes da população e um enorme déficit habitacional de 7,8 milhões de moradias e mais 12,4 milhões de pessoas vivendo em condições precárias em 3,2 milhões de domicílios. (SPINELLI, 2007)
Depois de relutar em reconhecer essa realidade, o Estado brasileiro abandonou o discurso da remoção pelo discurso da urbanização de favelas, e esse é o começo de um amadurecimento nas políticas públicas de maneira geral, que resultaram em importantes planos e metodologias para a aplicação de programas de forma mais integrada e participativa.
Levando em consideração o histórico dessas políticas e seus impactos negativos na vida da população mais pobre, este trabalho busca analisar brevemente seus antecedentes históricos, habitacional e urbano, e os respectivos avanços que cada país tem apresentado, considerando metodologias e conceitos mais integrais no que diz respeito ao processo de aplicação das políticas, e também, em relação às dimensões que abarcam o hábitat residencial. Enquanto as experiências chilenas nos mostram questões conceituais sobre a importância da conexão entre as dimensões da cidade, bairro e vizinhança para a garantia de uma melhora na qualidade de vida da população, além de algumas mudanças significativas nos objetivos da nova política habitacional, os planos e programas brasileiros têm elaborado metodologias que trabalham com a sinergia entre os setores políticos e os vários níveis administrativos (local, municipal, nacional).
Conforme o trabalho realizado com o Censo 2002, do Ministerio de la Vivienda de Chile, os requerimentos de construção de novas moradias que somam 632.992, foram quantificados considerando as necessidades de moradias irrecuperáveis a repor e as moradias a construir para solucionar a alta densidade residencial, e as 677.556 mil outras moradias possuem necessidades potenciais de alguma forma de melhoramento de materialidade ou saneamento. In El Déficit Habitacional en Chile: medición de los requerimientos de vivienda y su distribución espacial. Santiago, 2004.
Governo atual da Presidenta Michelle Bachelet, (2004-2010).
A Ficha Cas é um cadastramento das famílias e dá uma pontuação conforme a classificação do seu grau de pobreza. Está atualmente em processo de reajuste, sendo substituída pela Ficha de Protección Social.
Conforme estimativa da população feita pelo World population propects: the 2006 revision. Highlights. New York: United Nations, Population Division, 2007. Em IBGE Países - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
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