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secao 4!

A Colonização e as Cidades à Brasileira:

Aspectos sociológicos da urbanização

Amália Cristovão dos Santos

Minoru Naruto

Apresentação

De início, é preciso dizer que este é um trabalho de investigação, uma leitura de obras que tratam da formação da sociedade brasileira, tendo em mente um estudo sobre a formação das cidades brasileiras. Além disto, ele trata de elementos específicos, que são os atributos psicológicos.

BIBLIOGRAFIA

A fim de possibilitar essa investigação, escolhi uma bibliografia central cujo foco é a geração de 1930, reconhecida pelo "ensaio não-especializado de assunto histórico-geral" (p. 16), nas palavras de Antonio Candido. Nesta bibliografia estão trabalhos de Manoel Bomfim, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Para manter a coerência do trabalho, limitei a bibliografia às obras que permitissem ou que trouxessem os elementos desejados. Desta forma, ficaram de lado nomes importantes do período, como Caio Prado Jr. e Roberto Simonsen, cujo trabalho possibilitaria outro estudo. Em contrapartida, eu somei à lista o sergipano Manoel Bomfim, que é anterior a Freyre e Holanda, mas cujos estudos alinham-se aos seus. Seus trabalhos são semelhantes, inclusive, do ponto de vista da estruturação da análise, ou seja, dos pontos que traçam o caminho de seus estudos. Além disso, Bomfim traz uma contribuição peculiar que é a sua atenção à América Latina. Dos três, dentre as obras desta bibliografia, ele é o que se atém com mais apuro a esse recorte.

É das obras da bibliografia central que tomo o período e o perímetro estudados. Trata-se da colonização, entendida como o período que extrapola a proclamação da Independência, visto que certas características não se encerram neste momento. Também não se trata da totalidade do território brasileiro, mas apenas da porção onde se encontram as vilas, as cidades e os povoados relacionados diretamente à colonização, ao mercado internacional, e daquelas regiões sob sua área de influência.

METODOLOGIA

Para estruturar as leituras propostas, pautei-me pela metodologia de análise desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seus estudos sobre a sociedade francesa, na década de 1970. Sua teoria busca representar graficamente a posição de um indivíduo ou grupo no espaço social, em relação aos demais, a partir da quantificação de certos capitais. Desta avaliação, resultam as características de formação do indivíduo, ou um conjunto de atributos, chamado de habitus. Segundo Bourdieu, indivíduos de habitus semelhantes podem ser classificados esquematicamente como pertencentes a um grupo, cujas ações, reações e práticas tendem a ser as mesmas. É importante enfatizar a palavra "tendem" por que, para o sociólogo, a prática é condicionada e não determinada. Esta diferenciação é imprescindível para sua análise, visto que ela situa-se num equilíbrio entre as teorias que ele chama de "objetivistas", segundo as quais a vida do indivíduo está definida por fatores alheios a ele, e as "subjetivistas", que conferem total autonomia ao indivíduo, seja qual for a circunstância.

EIXOS DE ANÁLISE

A partir da leitura da bibliografia central, foram definidos três eixos, ou "três temas a partir dos quais os atributos psicológicos presentes na formação da sociedade brasileira são vistos, articulados e relacionados a questões urbanísticas e de práticas cotidianas" (p. 22).

Sobre a Ocupação do território, é indispensável dizer que Holanda e Bomfim atêm-se às diferenças entre a colonização portuguesa e a colonização espanhola como forma de caracterizar a ocupação das terras brasileiras. Além disto, os autores apontam características do colono português, tais como o individualismo, o isolamento e a capacidade de defesa do território, que trazem conseqüências, ora boas, ora ruins, para a constituição das cidades e da nação.

É imprescindível ainda lembrar que é no meio rural que a sociedade brasileira se forma. Pode-se citar um trecho (p. 59), entre inúmeros, extraído da obra de Holanda, que ilustram este ponto:

"É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas."

A sociedade colonial contava, quase que majoritariamente, apenas com senhores e escravos. Se excetuarmos a experiência holandesa no Recife, é apenas na metade final do século XVIII que tem início uma diferenciação social e econômica capaz de dar fôlego ao desenvolvimento urbano, com o descobrimento do ouro. Freyre é categórico ao afirmar que, antes disto, não havia "povo" no Brasil. Aliás, ele é tão radical neste ponto que afirma que a primeira cidade brasileira, de fato, foi Palmares, por ser a primeira a levantar-se contra o modo de organização do engenho.

De qualquer forma, mesmo deixada esta radicalidade de lado, é preciso reconhecer que a urbanização pautou-se inicialmente pela simples transposição do modo de vida e das relações rurais para o cenário urbano. Mantém-se características como o distanciamento "antes, entre engenho e cidade e, agora, entre sobrado e rua" e a disparidade de condições de vida entre dominantes e dominados. Lembrando Bourdieu, a terra é um capital importantíssimo no país, não somente como possibilidade econômica, mas também como fator de definição de status e de diferenciação da posição social.

Sobre Estados e leis, há duas citações que apresentam os traços mais marcantes do poder público, no período estudado. Diz Freyre que a sociedade colonial desenvolveu-se "Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular" (p. 40). Para Holanda (p. 42),

"No Brasil pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal."

Daí apreende-se que, em princípio, o Estado era intencionalmente ausente, de modo a diminuir os custos da Coroa com a colonização. A distribuição de largas faixas de terra a particulares combinada com a parca presença estatal configurou uma situação muito propícia para que donatários e senhores exercessem seus desejos aristocráticos. Desta forma, o mando "político e de outras naturezas" ficava concentrado e "virtualmente ilimitado" (p. 40), segundo Holanda.

Com a urbanização e outros fatores concomitantes, a Coroa sentiu a necessidade de reforçar seu controle e de constituir um aparato administrativo mais completo. Para ocupar os cargos mais importantes, foi requisitada a "gente principal do país" (p. 43), ainda segundo o intelectual paulistano, ou seja, os senhores de engenho e seus familiares, cuja idéia de administração misturava-se à de mando, como senhor e chefe de família. Holanda esclarece de forma muito precisa o que ele entende por diferenças entre Estado e família, de maneira que é possível visualizar claramente os malogros desta confusão. O que distorce ainda mais a administração pública é o "homem cordial" (p. 45), com sua forma afetiva de relacionamento, mesmo no trato dos negócios e nas instâncias políticas e administrativas.

A legislação urbana sofre com o "bacharelismo" (p. 57), que a aproxima da civilização e distancia-a da realidade, e com a exclusão, herdada do engenho. O poder público, antes neutralizado pelo mando privado, torna-se um trampolim para os interesses particulares das elites. Aqui, pode-se especular sobre a existência de um capital público, lembrando a hipótese que Bourdieu apresenta para a análise da União Soviética.

O terceiro eixo, Indivíduo, indivíduos, é um leitura mais livre da bibliografia, que possibilita debates mais específicos. Neste capítulo final, que faz as vezes de conclusão, sem sê-lo, proponho dois debates.

O primeiro debate é uma especulação sobre as várias facetas de uma característica muito citada pelos autores. “Freyre refere-se à "plasticidade"; Holanda, à aclimatação; e Bomfim, à "índole assimiladora" (p. 49), atributo este ao qual os autores atribuem boa parte do sucesso da manutenção de um território tão vasto a partir de uma ocupação de tão pouca expressão, com poucos recursos e poucos homens. Esta adaptabilidade fazia com que os colonos portugueses "vencessem" a terra ao serem "vencidos" por ela. Enquanto ingleses, franceses, holandeses e, até mesmo, espanhóis buscavam impor suas vontades sobre as condições naturais, os portugueses aprendiam com os índios, adaptavam seus costumes e abriam mão de certas condições de vida, de tal forma que fortaleciam sua simbiose com as terras colonizadas.

O que busco apontar nessa parte do trabalho é que a adaptabilidade é acompanhada por uma "frouxidão" e um "desinteresse". Os autores falam nestes temas. Holanda fala de tibieza; Freyre, de deformações e simulação; e Bomfim descreve a disciplina que se transforma em servilismo. Ou seja, fala-se, em vários momentos, num distanciamento entre a idéia original e o que é, de fato, realizado. A partir daí, apresento as considerações dos autores sobre essas facetas.

O segundo debate proposto gira em torno da pergunta: "Como seriam cidades, estas lusitanas povoações rurais?" (p. 59). Ou seja, existem características típicas do mundo rural, onde tem base a sociedade brasileira, que são conflitantes com a vida urbana. Os autores tratam do pouco apreço pelo espaço público, sua construção e seu uso. Também, a coexistência das camadas mais ricas e mais pobres, de forma segregada, quase impossibilita a percepção da cidade como algo único, uma só comunidade, um coletivo do qual se faz parte. É interessante pensar que enquanto os portugueses agiam de forma a desencorajar a formação de uma sociedade na colônia, essa sociedade formava-se mesmo assim. Ou seja, enquanto os colonos voltavam seu olhar para a metrópole, criava-se, à sua volta, uma outra nação. Se, por um lado, essa omissão gerou diversas lacunas, por outro, propiciou algumas aberturas. Nas palavras de Holanda, "o americano ainda é interiormente inexistente" (p. 63).

 

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