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secao 4!

Vitrúvio e os templos

 

Lucas Frech Caldeira

Mário Henrique Simão D'Agostino

Caso alguém elaborasse, como é do gosto de nossos tempos, uma lista dos maiores pensadores da cultura ocidental, certamente Vitrúvio estaria entre eles. No Renascimento o seu De Architectura era leitura indispensável, não apenas aos que estavam diretamente envolvidos na criação de uma nova arquitetura, enraizada na Antigüidade greco-romana, mas também aos humanistas e eruditos.

Surge então a pergunta: o que torna Vitrúvio tão notável? Os estudiosos da arquitetura elencam inúmeros motivos, mas um deles é consensual: o texto de Vitrúvio é o único tratado de arquitetura da Antigüidade a sobreviver até nossos dias. Esse fato tem tamanha importância que em qualquer discussão cujo tema envolva de alguma forma a vaga e ampla definição de "Arquitetura Clássica" Vitrúvio sempre ocupa uma posição de destaque. Porém sua relevância não está limitada a esse período, exatamente por ser, a partir do Renascimento, a referência máxima em teoria arquitetônica, tendência que só é arrefecida com a supremacia do modernismo. Sua presença sistemática em todos os tratados de arquitetura produzidos nesse espaço de tempo implica que Vitrúvio também interessa a todos que queiram estudar a tratadística ocidental.

O De Architectura não aceita uma rápida classificação, pois se freqüentemente encontramos trechos que podem ser descritos como um receituário de medidas práticas, é precipitado afirmar que se trata apenas de um manual técnico. Acompanhando o discurso de natureza mais pragmática e objetiva encontramos conceituações teóricas sobre os saberes do arquiteto e até mesmo anedotas de cunho moralizante. Mais ainda, seu tratado, composto por dez livros, não se limita ao campo de edificações, e abrange temas que deixaram de integrar a disciplina da arquitetura, em especial nos livros oito, nove e dez, que tratam, respectivamente, de hidráulica, gnomônica e máquinas. Muito se discuta a hipótese de Vitrúvio ter anexado os últimos três livros para que, somados aos sete que versam sobre assuntos mais diretamente ligados à definição atual de arquitetura, se chegue ao númspan class="oblique"ero dez (descrito pelo próprio autor como um número perfeito), assim como o último livro, que apresenta grande quantidade de informação, estaria lá menos por sua conexão com a arte de construir e mais simplesmente porque Vitrúvio dominava bem esse assunto e queria demonstrar sua erudição. Mas não devemos nos surpreender com a inclusão desses temas num tratado de arquitetura, pois aqui nos defrontamos com o problema de confundir as competências do arquiteto antigo com as do arquiteto contemporâneo. Quando o autor descreve no livro I as disciplinas que compõe a ciência da arquitetura fica claro que não está extrapolando sua proposta ao incluir os três últimos livros.

De todos os livros do tratado, sem dúvida são nos livros III e IV, onde o autor nos descreve os edifícios sacros ("deorum inmortalium aedibus sacris"), cujas symmetrias que fundamentam a arquitetura aparecem em sua forma ideal. Pois se na construção de residências particulares a funcionalidade naturalmente deve receber maior consideração, e as regras de symmetria devem ser flexibilizadas, o mesmo não ocorre nos templos, cuja finalidade última é prestar homenagem aos deuses.

Podemos aferir que o interesse maior de Vitrúvio pelos templos está na oportunidade de aplicar plenamente sua doutrina. As lições apresentadas nos livros III e IV não devem ficar restritas a arquitetura religiosa, antes esta deve ser um modelo para o restante da disciplina. Pierre Gros nota que, corroborando essa idéia, há o fato do autor dedicar grande atenção à questão da ordenação das partes que formam o exterior do edifício, enquanto «o interior dos santuários eles mesmos - pronaos e cella - são objeto de apenas um capítulo, e muito curto, onde não se aprende nada específico sobre a ornamentação interna, nem sobre a posição da estátua do culto e onde, exceto a questão prolixamente debatida do diâmetro das colunas situadas entre as antas das fachadas, o delicado problema das ordens interiores não é abordado» (1990, pp. IX)

Tendo explicitado a importância dos livros III e IV, apresento esse trabalho como uma análise da doutrina vitruviana, em especial no que diz respeito aos templos. Porém não procurei me restringir apenas ao texto. Vitrúvio cuidou para que todas as prescrições referentes às tipologias dos templos fossem acompanhadas por exemplos, construídos, preferencialmente, em Roma (em todos os três casos em que ele não cita exemplos romanos, faz questão de justificar sua escolha com a afirmação «não há nenhum exemplo em Roma»). Da comparação destes com as prescrições apresentadas no texto podemos retirar conteúdo para muitas reflexões, que não pretendo esgotar no presente trabalho.

Se os livros III e IV são o meu principal objeto de estudo, não posso deixar de discutir alguns temas fundamentais que, se omitidos, o entendimento do tratado antigo será muito prejudicado. Uma primeira leitura nos transmite a impressão que estamos diante de um conjunto de razões que, se respeitadas, bastariam para garantir a boa arquitetura. Analisando mais detidamente o texto, descobrimos que as informações dadas são freqüentemente insuficientes, quando não francamente contraditórias. Tais problemas encontrados no tratado de Vitrúvio serão objeto de mais de quinhentos anos de discussão. Apresentando alguns detalhes sobre a época em que viveu, em quais autores se baseou, a arquitetura do período, pretendo inclusive reforçar a idéia de que o De Architectura não pode ser bem interpretado se retirado de seu contexto histórico.

Finalmente, creio ser relevante uma breve exposição sobre o uso que se fez do tratado romano, que, a partir do Renascimento, devido à autoridade que a noção de "Antiguidade" implica, se vê revestido de imenso prestígio. Deste modo não pretendo estender a temática do trabalho para além das fronteiras temporais do De Architectura, antes busco discriminar as idéias do tratado de Vitrúvio daquelas impingidas neste pela tradição tratadística européia da era moderna.

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