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Especificidades

Maria Rita de Sá Brasil Horigoshi

Eugênio Fernandes Queiroga

apresentação

Estou tentando enxergar a Cidade. A Cidade da aglomeração, das relações sociais intensas e superficiais, das diferentes ambiências, dos cotidianos embrutecidos, dos Espaços transgredidos. Estou tentando dialogar com essa Cidade, que não é só uma, é a Cidade de cada um e a Cidade de todos.

Os espaços da cidade e a paisagem urbana são produzidos em diversas escalas. Não são apenas resultados passivos de uma globalidade, de uma sociedade em suas instâncias econômicas, políticas e culturais, com suas poderosas instituições. O espaço como produção social é também resultado de uma apropriação, de uma criação constante de seus usadores – para usar uma expressão de H. Lefebvre, que vai além de simples usuários – e das relações sociais entre eles.

Assim, as especificidades de fenômenos e espaços urbanos se tornam importantes para a realização e apreensão dos lugares, cuja vivência pressupõe imprevistos, encontros, conflitos, trocas.

O homem como usador deve habitar a cidade, vivê-la, promovê-la e transformá-la para uma superação da alienação instaurada nos espaços e tempos de reprodução do capitalismo. Quando as contradições são vividas e denunciadas, existe a chance de uma realização de consciência.

Tanto a alienação quanto a conscientização se dão no âmbito das práticas cotidianas, que hoje estão empobrecidas. Pobreza esta imposta e organizada pela violência da sociedade de classes e da "globalização socialmente injusta que presenciamos".

Dentro das práticas cotidianas, vê-se especial importância na construção dos momentos de ócio, "livres", como práticas de resistência, cujos palcos são os espaços públicos, abertos, da criatividade e identidade. O lazer não alienado pode sair das casas, ser coletivo e ativo, e diferenciar aquele espaço no tempo.

E para que essa relação aconteça, é indispensável a proximidade, a aglomeração, a vizinhança, não como padrão de distâncias, mas como possibilidades de contatos, encontros e continuidades.

Restam ainda muitas dúvidas sobre como arquitetos e urbanistas que nos somos devem agir nesse Espaço, nessa Cidade. O planejamento urbano nos aparece como uma forma de sistematizar o espaço, pôr ordem, impor leis, seguindo uma lógica do Estado e do sistema capitalista como um todo. O desenho, arquitetônico e urbano, deveria estar atento às desejáveis e constantes transformações do espaço, às complexidades ligadas à vida urbana, à escala humana, ao imprevisto. Será que isso em si já não é uma contradição? E se não for – e eu acredito não ser – como deve ser então esse desenho? Ele pode também ser transformador?

introdução

Este trabalho consiste na busca por um desenho urbano que reflita um desejo de cidade possível. Possível não nos moldes de sociedade em que nos encontramos hoje, privatista, individualista, burocrática. Mas um desenho que busque a coletividade, o pluralismo, o respeito aos recursos naturais e às pessoas que habitam essa cidade. E que ele seja um, não único. Que o Espaço criado, seja ele público ou privado, construído ou livre, se reinvente e se transforme pelas pessoas no tempo e no próprio espaço.

O recorte pensado para se desenvolver o trabalho foi o município de Taboão da Serra, partindo do desejo de se trabalhar neste TFG com uma cidade de dimensões menores e escala municipal mais apreensível, mas ainda dentro de uma realidade metropolitana intensa, uma vez que Taboão tem sua expansão e seu processo de urbanização bastante integrados com os de São Paulo, fazendo parte inclusive do processo de periferização que ocorre em toda Região Metropolitana.

primeira escala

Taboão da Serra é município da Região Metropolitana de São Paulo, e faz divisa com o setor sudoeste da metrópole (Vila Sônia, Raposo Tavares, Campo Limpo). Tem apenas 20,48Km², e recebe o título de sexta cidade mais densa do país e segunda do estado de São Paulo, com sua malha urbana completamente conurbada a das suas cidades vizinhas, São Paulo e Embu.

Sua emancipação política se deu em 10 de janeiro de 1959, e na época a cidade contava com cerca de 8 mil habitantes. Na década de 70, o processo de industrialização fez com que o município crescesse a taxas extraordinárias, recebendo um enorme contingente de famílias de baixa renda atraídas pela possibilidade de viabilização de suas moradias, em ocupações irregulares, carentes de infra-estrutura básica e equipamentos urbanos.

Hoje ainda sentimos as conseqüências desse crescimento desordenado, com grande parte de seus atuais 219.200 habitantes (IBGE, 2007) em ocupações irregulares, em áreas de várzea e de risco. O município apresenta uma forte concentração industrial, e mais recentemente, um importante setor terciário para toda região oeste da RMSP.

Taboão da Serra se encontra em um dos vetores de maior expansão da Região Metropolitana, e seu espaço está em constante e visível transformação. Com toda sua extensão territorial acomodada na Bacia Hidrográfica do Rio Pirajuçara, importante tributário do Rio Pinheiros em São Paulo, é o único dos seis municípios da sub-região Sudoeste que está completamente fora da Área de Proteção aos Mananciais, o que facilita a implantação de atividades econômicas e o seu adensamento.

A partir da leitura e análise do seu Plano Diretor Participativo, aprovado em dezembro de 2006, conversas com moradores e visitas à cidade, podemos elencar algumas questões importantes a serem discutidas. Uma primeira, bastante debatida, é a questão da drenagem. Mesmo quem não mora em Taboão da Serra sabe de sua fama de sempre ter enchentes. Uma das soluções adotadas foram os piscinões que, espalhados pela cidade, têm resolvido parte do problema (apesar de causarem outros, como a enorme perda de área livre pública, a qual permanece a maior parte do tempo sem uso, gastos grandes com manutenção e limpeza, etc.). Outras medidas elencadas no plano são a da recuperação de matas ciliares, permeabilidade do solo em faixas de várzea e áreas de alta declividade, além de uma ampliação geral da taxa de permeabilidade nos lotes e em áreas públicas.

O PDP coloca como ação prioritária a elaboração e implantação de um Plano Regional de Drenagem e de Micro-Drenagem com os municípios da bacia do Pirajuçara. Isso entraria como ação do CONISUD – Consórcio Intermunicipal da Região Sudoeste da Grande São Paulo – assim como a integração do sistema de transporte coletivo e a articulação do sistema viário principal, facilitando o acesso ao Rodoanel, Rod. Régis Bittencourt e Rod. Raposo Tavares.

Esse sistema integrado dos transportes coletivos, municipal e regional, visa à unificação das tarifas, pois além dos ônibus intermunicipais terem tarifas maiores que as de São Paulo, eles não permitem o uso do sistema de Bilhete Único. Além disso, quer-se garantir a ligação das estações de metrô mais próximas (futura Vila Sônia – linha amarela - e Capão Redondo/Campo Limpo – linha lilás) com a cidade. Existe também a demanda e a proposta de um sistema auxiliar de transporte através da implantação de uma rede cicloviária articulada com o sistema de transporte coletivo (ciclovias e bicicletários nos terminais).

A Taboão da Serra industrial, hoje, não emprega mão-de-obra local, que ainda é desqualificada. Cria-se assim um trânsito de taboenses que em geral vão trabalhar em São Paulo, e pessoas de outros municípios que vão trabalhar em Taboão. Já o setor terciário, hoje muito forte na cidade, fornece emprego à população local, que evita assim grandes deslocamentos.

A cidade possui uma rede de escolas públicas bem distribuída, e trabalha-se para a criação de uma estrutura de apoio que promova a inclusão social na escala do bairro nesses equipamentos. Unidades de saúde e equipamentos esportivos são necessários em uma escala regional, enquanto parques, hospitais e equipamentos de cultura e lazer são demandas de escala municipal. No mais, cursos de nível superior e escolas profissionalizantes que qualificassem a mão-de-obra local também se mostram de extrema importância. O PDP identifica terrenos públicos e privados para a consolidação dessas estruturas, e incentiva a aplicação do Direito de Preempção, onde a Prefeitura possui prioridade na compra dos mesmos.

Um dos maiores problemas do município é a habitação, hoje com muitos assentamentos precários – em torno de sessenta –, ocupações irregulares, construções em áreas de risco, falta de saneamento básico e infra-estrutura urbana. O plano demarca áreas de ZEIS I e II (Zonas Especiais de Interesse Social), para trabalhos de urbanização em assentamentos precários, e para promoção de habitação de interesse social. Uma das dificuldades que a cidade enfrenta para a solução desse problema é que as áreas são todas muito densas, e o município dispõe de poucos terrenos vagos. Além da usual "falta de recursos" e a eterna descontinuidade dos projetos.

Outro ponto bastante notável tanto no PDP quanto nas falas dos moradores, é a necessidade de uma identidade, de lugares de referência e espaços públicos significativos. Faltam praças (formais, ao menos), arborização, e mesmo calçadas mais largas, mostrando uma clara prioridade dada aos veículos motorizados particulares, e o descaso com o pedestre – que é maioria. Sua paisagem de vales e morros, sobre um solo extremamente irrigado, já nem é mais reconhecida e apreciada, tamanha é sua impermeabilização e adensamento.

proposta para a primeira escala de análise

Surge após as considerações feitas sobre Taboão da Serra, mas sem perder o olhar para uma escala metropolitana de relações e deslocamentos, uma proposta de rede de transportes que toma como base o Plano PITU 2020 (Plano Integrado de Transportes Urbanos), com suas diretrizes mais abrangentes do que o atual 2025, o qual toma como partido a chamada "rede essencial", muito concentrada ainda no centro expandido de São Paulo.

A importância de um transporte público de qualidade para a qualidade de vida dos habitantes da metrópole é evidente, principalmente com a nossa estrutura social tão marcada no território, ou ainda, um território tão produzido por essa estrutura social. Periferias lotadas, carentes de infra-estrutura urbana, são obrigadas a se deslocar aos centros diariamente, em longas viagens desumanas. Centros estes que permanecem como pólos de emprego e de infra-estrutura, porém, sub-habitados.

Fica claro que investimentos em habitação para todas as classes sociais no centro, que criasse vitalidade e diversidade, assim como investimentos em infra-estrutura urbana nas periferias, que criasse novas centralidades, são essenciais. Aliados a uma política de transportes públicos, que permita deslocamentos de qualidade, e que se sobreponha a essa política rodoviarista em voga, que já chegou em seus limites físicos e passou dos seus limites em termos de destruição do Espaço urbano.

A proposta é de uma hierarquia de sistemas de transportes que formam uma rede capilar e abrangente, da bicicleta ao metrô, cada um adequado a sua escala de capacidade e distância e ao traçado urbano. Lembrar que o recorte feito em Taboão da Serra é parte de um sistema metropolitano completo, ou seja, o tipo de ligação e abrangência existente nesse recorte se repetirá por outras regiões da RMSP, onde elas se fizerem necessárias.

A rede de metrô do PITU 2020 é bastante complexa, e se abre inclusive para os municípios vizinhos a São Paulo. Sua linha 4, amarela, que faz uma ligação leste-oeste e que hoje termina na estação Vila Sônia (ainda não inaugurada), se estenderia até o centro de Taboão, junto à Rod. Régis Bittencourt. Ao mesmo tempo, a linha 5, lilás, que hoje tem um curto trecho desconectado da rede na zona Sul de São Paulo, faria uma ligação norte-sul.

Três linhas de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) foram propostas como rede secundária de média capacidade, que fizessem ligações municipais entre Taboão e Embu das Artes e que conectassem esse tecido urbano à rede principal de metrô, com a estação Taboão da linha 4 e Campo Limpo da linha 5. Essas linhas têm desenhos semelhantes aos corredores de ônibus propostos pelo PITU 2020, que também são de média capacidade.

A escolha pelo VLT se deu, primeiramente, por sua viabilidade física, passando por terrenos planos das várzeas dos três principais córregos e ribeirões de Taboão: Pirajuçara, Poá e Joaquim Cachoeira. Em segundo lugar, pelo fato de este tipo de sistema de transporte não se constituir como barreira física dentro de um espaço urbano consolidado, e ter uma escala humana mais acessível. Por fim, por ele ser um eixo fixo, pode se tornar um ordenador urbano mais marcante, se tornar referência – para o caso de Taboão da Serra, esse ponto é bastante significativo.

Em seguida são elencados três eixos norte-sul dentro de Taboão que poderiam comportar corredores de ônibus, fazendo ligações intra-municipais e entre as linhas de VLT. Fechando essa rede mais fina, micro-ônibus chegam aos interiores dos bairros, bastante apropriado para a escala de Taboão, com suas ruas estreitas e tortuosas. Propõe-se também uma rede complementar de ciclovias que também margeiam os rios, e que culminam em estações de metrô e seus bicicletários.

segunda escala

Após algumas visitas à Taboão da Serra e análise dos mapas de diagnóstico da cidade, escolhi a área do entorno do córrego Joaquim Cachoeira – ao norte, englobando bairros como Jardim Panorama e Jardim Trianon, e ao sul até a Av. Kizaemon Takeuti – como área de estudo e intervenção para este trabalho.

Os mapas mostram que a região ao norte do córrego é uma das mais densas da cidade, de maior índice de vulnerabilidade (IPVS – Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, Fundação SEADE, 2000), e extremamente pobre de áreas verdes. Em visita à área, percebe-se a predominância de assentamentos precários e irregulares. Já a Av. Kizaemon Takeuti é uma centralidade importante da cidade, que oferece grande variedade de comércio e serviços.

Em uma primeira visita, realizada em um domingo, a área estava bastante movimentada. Uma enorme feira-livre se estendia por cerca de 600m (trecho em que o córrego está coberto), ruas de lazer fechadas para o futebol, a caminhada, a bicicleta e a pipa, campeonato municipal de futebol em um campo de terra, com muita torcida, bateria e churrasco, crianças em um parquinho infantil, botecos lotados conduzidos por jogos de sinuca.

Foi feita assim a escolha. Aquela área, tão pobre nos mapas, e tão rica na vida.

A bacia hidrográfica do Joaquim Cachoeira começa em Embu das Artes, município vizinho a Taboão da Serra em sua fronteira oeste, e tem sua foz no Ribeirão Pirajuçara, divisa de Taboão com São Paulo. Marcada por um terreno bastante acidentado, seus pequenos afluentes cortam a topografia criando vales estreitos e profundos.

A área ao norte do córrego é mais irrigada, acidentada e precária. Praticamente todos os vales dos afluentes, "sobras" de loteamentos, foram ocupados irregularmente, e os cursos d'água em sua maioria se encontram tapados. A área entre o córrego e a Av. Kizaemon Takeuti é mais plana, e mais heterogênea quanto à qualidade de suas construções. É predominante por toda sua extensão territorial o uso residencial, com concentrações de usos comerciais na Av. Kizaemon e nas avenidas em torno do córrego, e pontuam-se também comércios de bairro e de garagem, como mercados, bares e brechós, por todo o tecido. Há ainda algumas concentrações industriais e de grandes galpões, que assim como todo setor industrial em Taboão, não emprega mão-de-obra local. As poucas manchas verdes existentes se situam em Embu – inclusive, sua nascente se encontra sob uma favela, mas margeia uma área significativa de mata.

A região é bem servida de escolas públicas de ensino infantil, fundamental e médio, e de equipamentos esportivos, como campos de futebol e ginásios poliesportivos, contando inclusive com uma escolinha de futebol. Existem alguns centros de saúde espalhados pelo território, como UBS geral e infantil, Serviço Especializado de Reabilitação e Central Odontológica. O Hospital Geral do Pirajuçara, único que atende a cidade, se encontra dentro da área da bacia, mas não consegue atender a demanda gerada. No mais, destaque ao único equipamento de cultura e lazer da região, a Lona Machado de Assis, situada na beira do Joaquim Cachoeira com a Rua das Olarias, onde ocorrem aulas de dança, hip hop, grafitti, capoeira, etc, mas que também não consegue oferecer vagas suficientes. Destaque também ao CRAS, Centro de Referência de Assistência Social, que funciona como escritório local da prefeitura, contando com assistentes sociais, arquitetos e engenheiros que trabalham nas áreas lindeiras e atendem à comunidade.

Não pude notar a presença de muitos espaços livres/públicos/formais significativos. A Praça Luiz Gonzaga, localizada na Av. Kizaemon, é um grande piso cimentado, e parece ser bem utilizado – salvo quando o sol não permite, e todos correm para os bancos nas extremidades sombreadas. Outra pequena praça localizada no entroncamento da Rua Antônio de Oliveira Salazar com a Av. Antônio Soares de Azevedo – "quando o córrego faz a curva" - me chamou a atenção por sua diversidade de atividades. Um parquinho infantil, que beira o córrego, também é bastante utilizado, mas infelizmente não estabelece nenhuma relação com a água ao lado.

Aqui a rua é o espaço público por excelência.

O córrego Joaquim Cachoeira exerce uma influência importante no território. Ele recebeu tratamentos diferentes ao longo do seu curso, tendo trechos canalizado e aberto, canalizado e tapado, e ainda alguns pequenos sem intervenção direta em suas margens. Ao se andar pelo córrego, percebemos manifestações dos moradores de apreço pela proximidade com a água – situações como bancos improvisados e mesmo o revestimento com azulejos do chão sob uma árvore para seu uso mais confortável são comuns. Assim como o é também o despejo de lixo e esgoto da população que ocupa suas margens.

Essa população sofre bastante com enchentes, assim como ocorre em todo sistema hídrico principal da cidade. O trecho que vai da foz até o começo da Av. Panorama possui áreas de alagamento importantes. Medidas como a criação de piscinões resolveram parte do problema, mas ainda não o erradicaram, visto a enorme taxa de impermeabilização do solo na região.

Quase em sua foz com o Pirajuçara, encontramos um desses piscinões, com área aproximada de 16.000m2, área esta livre e verde que permanece vazia e inutilizada em grande parte do ano.

proposta para a segunda escala de análise

Em associação à proposta de redes de transporte feita anteriormente, chego agora a uma avaliação do território da bacia hidrográfica do Joaquim Cachoeira dentro do município de Taboão da Serra, com o intuito de se estabelecer um sistema de espaços livres capilar, que tivesse o córrego como ordenador e centralidade linear.

Foram identificadas as áreas livres, sejam elas públicas – como o piscinão -, ou privadas – terrenos significativos ainda vazios. Indicaram-se também terrenos hoje ocupados, mas que não exercem sua função social, para desapropriação – como o terreno em torno do piscinão, hoje ocupado por ferros-velhos, ou então a pequena área industrial da Rua das Olarias, que além de não empregar mão-de-obra da região, nega o rio e seu entorno. Por fim, levantaram-se os equipamentos públicos que poderiam ser cada vez mais abertos à comunidade e integrados ao sistema de espaços livres.

Vale ressaltar que em um tecido tão compactado como o de Taboão, conseguir estabelecer respiros urbanos se torna essencial. O córrego, que é por natureza um espaço público centralizador, pode ter sua importância resgatada e ser uma alternativa na construção de uma cidade mais aberta, mais plural. O respeito com os cursos d'água através da reconstrução de suas margens, da permeabilidade do solo, de áreas alagáveis, de visibilidade e contato, proporciona inclusive uma cidade mais equilibrada para todos que nela habitam.

terceira escala

Quando nos aproximamos de escala e nos relacionamos com o Espaço; os usos, apropriações e conflitos já existentes se revelam mais fortemente, e uma postura propositiva se apresenta em torno de muitas variáveis e descaminhos.

A questão levantada no começo deste trabalho sobre a atuação do arquiteto- urbanista e a existência de um desenho tenta aqui ser experimentada e esboçada. O desenho como resultado de uma concepção de Espaços, aberta, flexível, pensada para local e conjunto de pessoas específicos, em dinâmicas e relações específicas que por sua vez estão inseridas em contextos globais, complexos e, por que não, generalizados.

Foi através da busca por essas especificidades e generalidades, por essas muitas cidades que existem sobrepostas, e por muitas outras cidades possíveis que se realizou este projeto.

O olhar se volta para a reinvenção do vazio, vazio não-esvaziado de usos e possibilidades, sejam eles margens, centros, mirantes, frestas, que incentivem um desvendar da paisagem, do construído e do outro.

Escolheu-se dentro da bacia do Joaquim Cachoeira uma área que abarca diferentes situações de ocupação e uso. São duas áreas marcadas pela proposta anterior como desapropriação, que se encontram junto ao córrego – indústrias da Rua das Olarias (que nomeei neste trabalho como fábricas) e galpões na esquina da Rua Antônio de Oliveira Salazar com a Av. Antônio Soares de Azevedo (triângulo) – e duas encostas que acompanham pequenos afluentes do córrego, hoje ocupadas irregularmente (Vila e Trianon). Todas permitem tipos de intervenção diferentes, e como exercício projetual se faz muito interessante trabalhá-las como conjunto.

fábricas

Área que hoje abriga duas indústrias de pequeno porte e um galpão da Igreja Universal do Reino de Deus, conta em seus arredores com uma concentração de equipamentos públicos, como escola, quadra municipal, lona cultural e campo-escola de futebol.

Rodeada de muros e guaritas, nega seu entorno e dá as costas para o córrego, em um trecho ainda não-canalizado, onde a rua se afasta e libera as margens. Do outro lado, uma pequena ocupação irregular, de aproximadamente 20 famílias, tem os fundos de suas casas dando diretamente no córrego, que serve de esgoto a céu aberto.

Tudo soma uma área de aproximadamente 33.000m2, de grandes potencialidades, como a proximidade com o rio, e com os diversos equipamentos.

triângulo

Hoje engloba alguns galpões de uso comercial, em uma área estimada de 8.000m2, um parquinho infantil e um espaço, hoje usado como estacionamento, onde a rua se afasta do córrego e libera uma calçada junto à margem.

Na esquina oposta, encontra-se a pequena praça "quando o córrego faz a curva", descrita anteriormente, onde se localiza também o CRAS.

vila

Com um afluente do Joaquim Cachoeira passando sob sua viela, esta ocupação irregular se dá em uma das encostas, cuja declividade chega a 45%. Suas construções já são verticalizadas, uma média de 3 a 4 pavimentos, que cortam o terreno e recebem entradas também pela rua de cima, a partir do 30 andar.

Restam ainda algumas áreas sem ocupação, onde se improvisam escadas e acessos, uma vez que a viela não tem saída.

Trianon

Cortada também por um afluente do Joaquim Cachoeira, esta favela conta com aproximadamente 300 famílias, com média de três/quatro integrantes. Apenas 26 delas se encontram em área particular, sendo que o processo de uso capião está em andamento; as outras ocupam uma área pública.

Existe um projeto de urbanização aprovado em 2001, que até hoje está parado por falta de recursos, onde era mantida a maioria das construções que dão hoje para as ruas lindeiras e onde apenas 40 casas estavam destinadas ao reassentamento dos próprios moradores. Vale lembrar que o espaço em uma favela é bastante dinâmico, e se transforma a todo tempo, o que faz com que um projeto de 10 anos atrás tenha que ser revisado e readaptado para ter validade.

Próximo à nascente do afluente já foram feitas algumas remoções pela Prefeitura, onde no projeto passaria uma rua. Suas encostas variam bastante, mas chegam a ter mais de 60% de declividade. Sua parte mais baixa, próximo à foz no Joaquim Cachoeira, é mais plana, e a esquina é ocupada pela praça e pelo CRAS.

o projeto

fábricas

Sua proximidade com o córrego, com os equipamentos públicos existentes e com a nova linha de VLT fizeram com que esta área se adequasse a um uso público, de escala regional, que dada as demandas do município analisadas anteriormente e as potencialidades que o terreno oferece, decidiu-se por um equipamento cultural e de lazer, que complementasse as atividades oferecidas pela Lona Machado de Assis, que sozinha não consegue atender a população local.

Com uma premissa de espaços livres e flexíveis, e de aproximação com a água, que se encontra mais solta, criou-se uma área de alagamento permanente, constituindo uma lagoa urbana, e uma de alagamento ocasional, sobre uma arquibancada permeável. Seus patamares sobem suavemente em torno de solo permeável – gramado – até atingirem a cota 757m, onde se alargam em um grande platô situado 2m acima da cota do rio. Este platô, situado em cota seca, se encontra rebaixado 3m da rua de cima, criando uma praça com amplo acesso visual, que convida os transeuntes para seu uso.

Lá temos salas multifuncionais enterradas sob a calçada, cujo acesso se dá pelo platô, e uma grande cobertura, livre, que pode abrigar as mais diversas atividades – um grupo de capoeira, um ensaio de teatro, aulas de dança e o que mais se imaginar. Ela cria dois espaços abrigados, um que se abre para o rio, e outro que se abre para a rua. Uma área rebaixada 40cm do platô se reveste de areia, e surge uma praia elevada sobre a lagoa. Uma grande rampa liga o platô à calçada, e constitui a cobertura de um auditório-teatro que se encontra enterrado. Assim, o auditório cria uma versão de si mesmo ao ar livre, quando se apropriam de sua cobertura para sessões públicas de cinema ou apresentações abertas de peças de teatro. O urdimento do palco enterrado – espaço de suporte técnico acima da boca de cena – se revela no platô, e pode se tornar tela de cinema, parede para oficinas de grafitti, encosto.

Junto ao córrego criou-se um largo passeio-praça que acompanha também a linha do VLT, que ali possui um ponto de parada. Um de seus afluentes, hoje enterrado sob a rua do núcleo habitacional Irati, se revela na praça sob um gradil pisoteável, possibilitando o acesso visual e auditivo à água, que pode chegar a sua foz mais livremente.

triângulo

Local que abriga um ponto de parada do VLT, e que se caracteriza como espaço de mobilidade, de trânsito, de fluxos. Plano, ele recebeu um trabalho de pisos, que com suas diferentes texturas e temperaturas cria sensações e possibilidades aos que passam e aos que restam.

Incorpora-se o parquinho infantil existente, porém seu plano de areia é rebaixado 90cm, criando uma mureta/guarda-corpo que permite o olhar sobre o córrego. Seus outros planos, permeável, concreto liso e paralelepípedos, acontecem livremente, tendo como intervenção fixa somente uma marquise-pergolado, que além de fornecer sombra, abriga uma estrutura com pia e eletricidade para barracas retráteis. Essas podem receber diferentes tipos de atividades conforme dia e hora, e são recolhidas quando não estão em uso, liberando o espaço para que novas intervenções aconteçam.

No mais, o plano livre e a sua acessibilidade permitem que além dos usos cotidianos, que podem ser dos mais variados, ele seja um espaço, nessa cidade compacta, que abrigue também intervenções pontuais, como um circo, ou uma festa junina da cidade.

vila

Suas características de ocupação e de terreno permitem uma intervenção mais pontual, de melhorias nas construções e áreas de uso público já existentes, e o trabalho com as áreas ainda livres, para a construção de moradias novas, de acessos e áreas de estar.

Sua viela sem saída dá ao lugar um caráter de vila, de vizinhança, de apropriação deste espaço. Ela é consideravelmente larga, o suficiente para não criar uma sensação de confinamento que as construções altas poderiam causar. Para o projeto, assume-se esta viela como espaço público e do pedestre, e se trabalha com a abertura de uma calha central que coincide com a galeria do pequeno córrego que passa por baixo, coberta por um gradil pisoteável, permitindo assim o uso livre da rua e seu contato visual e auditivo com a água.

Existem hoje cinco áreas desocupadas ou precariamente ocupadas por escadarias, onde foquei minhas novas intervenções. Nelas foram pensadas novas tipologias habitacionais, um acesso por uma escada-arquibancada, que com seus grandes patamares se torna também uma área de estar e descanso sob a árvore central, e um acesso por rampas, que descem a encosta a 8% de declividade, e criam taludes permeáveis.

São duas as tipologias habitacionais pensadas: a primeira, de testada estreita, se adéqua aos dois lotes finos e compridos situados no começo da vila. São casas sobrepostas, sendo uma entrada para uma família pela vila, e outra, a partir do 3o pavimento para outra família pela rua, através de uma passarela que passa por cima de um talude permeável. Libera-se assim um pouco do terreno, que sofre menos cortes, e ainda permite uma abertura para as fachadas laterais das construções já existentes.

A segunda tipologia tem testada comprida e pouca profundidade, para dar ainda mais espaço ao talude que vence a topografia acentuada. São apartamentos de 62m2, agrupados em dois blocos de quatro em torno de uma escada comum. Espelhado para o lado da rua de cima, mais um bloco aparece, de dois andares a partir do nível da rua, ou de três andares, sendo um para baixo, conforme a inclinação do talude, e um térreo sob pilotis, que permite inclusive o uso desse espaço permeável. Estabelecem-se também passarelas que dão acesso da rua de cima às escadas.

São no total 35 unidades habitacionais, destinadas à realocação das famílias que estavam ocupando as margens do córrego próximo às fábricas e a algumas famílias removidas do Trianon, cuja intervenção irei explicar a seguir.

trianon

Com características muito diferentes da vila, quis aqui ensaiar uma intervenção mais radical no espaço, para descobrir como poderia ser esse desenho, de uma situação topográfica tão comum em toda Taboão da Serra, e mesmo típica da bacia do Alto Tietê.

Não que ele seja reproduzível, como modelo a ser carimbado, mas a idéia foi criar conjuntos de conceitos de espaços que levassem em conta o relevo e o córrego, e uma diversidade de usos que promovesse vitalidade e abertura à cidade, ao que antes negava a si mesmo.

Isso parte também de uma aflição real, que é trabalhar com urbanização de favelas, e a costura quase impossível que se tem que fazer entre o que existe, o que se quer e o que se consegue, tudo muito diferente.

Parto de uma remoção integral das 300 famílias, para uma total reconstrução e re-concepção desse espaço. São pensadas algumas diretrizes que foram seguidas: primeiramente, a realocação das famílias nesse mesmo espaço, ou pelo menos de grande parte delas, pois segundo Juliana Abramides, assistente social que trabalha na área, esse é o desejo da grande maioria, que diz ter uma boa relação de vizinhança com os demais, além de já terem estabelecido uma relação com o entorno e com o seu próprio espaço. A reaproximação das águas, seja ela táctil, visual ou auditiva, e o resguardo da nascente, dentro dos limites impostos de ocupação, principalmente como valor simbólico e educativo. A abertura do vale para a cidade, através de acessos, passagens, travessias, que façam a integração física e visual dos espaços e das pessoas. Abertura possível também através da diversificação dos usos, o residencial, o comercial, o institucional e o livre, dispostos de forma a convidar para seu uso.

Foram pensadas duas tipologias habitacionais de casas unifamiliares, e adaptou-se um projeto de edifícios de habitação social realizado pela Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais para o núcleo Irati, também em Taboão da Serra, e com características físicas bastante semelhantes ao do Trianon.

A primeira tipologia é um conjunto de seis casas, dispostas em dois blocos de três, que compartilham um jardim comum. Elas foram pensadas para as encostas íngremes, e vão se patamarizando para vencer 5,60m de altura. Cada casa possui de 72 a 74m2 de área construída, dividida em dois pavimentos, sendo que parte da laje do de baixo serve como varanda para o de cima.

O bloco de três casas consiste na casa que se abre para a rua de cima, e desce um andar, e outras duas que se abrem para a rua de baixo, já dentro do núcleo, e sobem um pavimento, ou o contrário, duas casas que se abrem para a rua de cima, e uma para a rua de baixo. O próximo bloco é igual, porém deve se adequar ao terreno, e cria-se assim uma diferença de nível entre eles. O jardim se encontra em um patamar intermediário. Na cota -2,8m, quando já descemos um pavimento da rua, temos um patamar que dá acesso às três casas (pelo andar de baixo das altas e pelo andar de cima das baixas). Dele tem-se uma escada que ou sobe ou desce até o patamar – no exemplo usado aqui, existe um desnível de 1,20m entre os dois blocos de casa, logo, o jardim encontra-se a 0,60m de ambos os blocos, para cima ou para baixo. Do jardim, sobe um talude verde que chega até a rua de cima, ou desce até a rua de baixo.

Esse jardim surge de uma concepção um pouco mais coletiva do habitat, que proporciona encontros, relações, mas sem negar a privacidade da casa. Inclusive, o talude que chega às ruas seria aberto – é o rebaixo e a suspensão do jardim que dão essa noção de um lugar mais reservado. São previstos alguns recortes e recuos, que garantam a iluminação e a ventilação em caso de ampliação futura dos moradores.

A outra tipologia é um sobrado para as áreas planas já mais próximas do córrego. Elas estão agrupadas duas a duas, e possuem um recuo de entrada comum, assim como o uso das varandas também pode ser conjunto, se existir essa vontade.

Os edifícios são compostos por módulos que vão se organizando em torno de um módulo de escada, este sobre pilotis, que com sua angulação cria um desenho que se adéqua ao espaço. Existem apartamentos de 1, 2 e 3 dormitórios, que atendem às diferentes demandas das famílias – em geral pequenas. O térreo varia ora em apartamentos, ora em comércios e abriga também uma creche. Os módulos cujos térreos são comerciais localizam-se voltados para as ruas, dinamizando seu uso; enquanto a creche se encontra próxima a parquinhos e equipamentos voltados para as crianças, intensificando o uso dessas estruturas. Eles estão na parte sul do núcleo, uma área mais plana, mas ainda assim, os desníveis a serem vencidos fazem com que os módulos tenham algumas diferenças de altura.

Foram projetadas, assim, 285 unidades habitacionais, que supre praticamente toda demanda das famílias do Trianon. Quinze outras unidades foram previstas na vila para complementar a realocação.

O córrego recebe tratamento diverso em sua extensão pelo núcleo, mas sempre priorizando um acesso, seja ele físico ou visual, à água. Em sua nascente e proximidades, gramados e abundância de árvores, em especial aquelas que "chamam" água, como as helicônias, para caracterizar aquele espaço como reservado, de preservação. Em meio à praça central do núcleo, o córrego aparece canalizado a céu aberto, com muros de gabião e vegetação, percorrendo um caminho meândrico até se abrir de novo, nos gramados entre os edifícios habitacionais. Na praça do comércio, ele volta a ser canalizado, agora sob gradis pisoteáveis, e em um desenho ortogonal, deixando explícitas as diferenças de tratamento. Ao fim de seu percurso, um pouco antes de sua foz no Joaquim Cachoeira, quando passa canalizado sob a praça da esquina, já existente e mantida, o gradil se alarga, reforçando ainda mais a sua presença.

A esquina de baixo, junto ao Joaquim Cachoeira, abriga uma praça que foi mantida no projeto, assim como o CRAS, cuja quadra, hoje já bastante utilizada pela comunidade, foi apenas ampliada para padrões de quadra poliesportiva, e ganhou uma arquibancada que sai diretamente da rua.

Diversos acessos são pensados para que reconectem esse tecido à cidade. Um ponto importante é a travessia em nível pelo equipamento-ponte, que faz uma importante conexão de encostas que nunca se vêem, além de atender as demandas reais da população que lá vive, servindo-a com uma biblioteca e um centro de mídias digitais. O equipamento incentiva a travessia e o desvendar da paisagem, tão importantes para a percepção e a conscientização de um território, para a geração de uma identidade das pessoas com este território. E ao mesmo tempo, a passagem incentiva também o uso deste equipamento cultural, não menos importante na formação desta conscientização, deste olhar para si mesmo.

O lúdico aparece em forma de grandes escorregadores postos em uma das cabeceiras do equipamento-ponte, saindo de um plano de areia rebaixado da rua, e chegando até a cota baixa, já perto da creche. Do patamar de areia, atravessa-se a biblioteca por uma passagem aberta, que divide o setor infantil e a área de estar, locais de mais barulho, do resto da biblioteca.

A esquina superior, cumeeira do morro, abriga uma padaria comunitária, gerida por cooperativas locais, que ao mesmo tempo que reconstrói essa esquina através desse uso tão típico, a reinventa como observatório do vale, quando, ao invés de pôr-se como obstrução, dá licença ao observador, rebaixando-se no terreno três metros e sugerindo-se apenas por um plano inclinado de vidro. Oferece assim tanto o olhar à cidade quanto à movimentação da padaria. Seu acesso é feito por um desvio nas calçadas limites do terreno, que a atravessam em nível, e desdobram-se em uma escadaria anfitriã do vale do Trianon.

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