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secao 4!

São Vito:

o barulho e o silêncio da imprensa delineando uma política pública

Renata Monteiro Siqueira

Ana Cláudia Castilho Barone

Este Trabalho Final de Graduação consiste em um estudo focado no Edifício São Vito, localizado na Avenida do Estado, área central da cidade de São Paulo. Esse prédio, obra da construtora Zarzur & Kogan e projeto do arquiteto Aron Kogan, foi inaugurado em 1959. Nos anos 1950, a Zarzur & Kogan ficou conhecida pela construção de grandes edifícios que combinavam tipologias residenciais de quitinetes, comércio e serviços na área central. Esses imóveis foram produzidos no contexto da crença no adensamento da área mais bem servida de infra-estrutura da cidade como uma resposta ao problema habitacional e de locomoção urbana, que se agravavam naquele momento. Dentre esses exemplares, o São Vito foi, possivelmente, a obra mais ousada e constituiu uma espécie de experiência de aplicação desses preceitos, o que criou na paisagem uma tipologia arquitetônica excepcional.

O edifício, que a princípio destinava-se às classes médias, teve a sua população progressivamente substituída por outra, de menor renda, concomitantemente ao processo de transformação de seu entorno, ideologicamente conhecido como "deterioração urbana". O prédio passou a ser identificado como um símbolo da "decadência do centro", assim como da falência do projeto da arquitetura moderna brasileira. Contudo a formulação de uma relação direta de causa e consequência entre poder aquisitivo e qualidade urbana é precipitada. Além da dificuldade em garantir recursos para a manutenção daquele condomínio, outros fatores contribuíram de maneira incisiva para a precarização do centro: a diminuição dos investimentos por parte do poder público, que passaram a ser direcionados para as novas áreas ocupadas pela elite, ou as grandes obras viárias que passaram a entrecortar aquela região, transformando-a em um lugar de passagem.

Desde os anos 1970, o entorno do São Vito, notadamente o Parque Dom Pedro II, tem sido alvo de projetos de reurbanização que visam a restauração de usos vinculados à elite e às classes médias, desde então desinteressadas pela região. Em algumas ocasiões, o São Vito foi incluído nesses projetos, discutindo-se ora sua reforma, ora sua demolição.

Nesta pesquisa, resgatamos os registros da imprensa a respeito do São Vito na hemeroteca do Cesad [1] e os documentos produzidos pela prefeitura de São Paulo sobre o edifício e seu entorno no arquivo da Emurb [2]. Percebemos uma alternância entre longos silenciamentos a seu respeito e períodos em que ele foi bombardeado de notícias, que corresponderam aos momentos em que anunciou-se projetos públicos para ele. A partir do cruzamento entre essas duas fontes, elaboramos uma periodização específica para realizarmos o nosso estudo, que alterna dois períodos que denominamos de "silêncio" (1980-1985 e 1993-2001) e de "barulho" (1986-1992 e 2002-2009).

Para a compreensão do significado do silêncio e do barulho que pautam nosso estudo, respaldamo-nos em dois autores principais. O historiador Michel de Certeau, ao entender o "não-dito" como material analítico, aponta caminhos para a interpretação do silêncio em torno do São Vito. A filósofa Hannah Arendt, por sua vez, ao defender que a política é a condição humana por excelência e que a sua existência está sujeita unicamente à pluralidade de vozes, nos apresenta não apenas um contraponto ao silenciamento da voz de determinados atores envolvidos nos processos que estudamos, mas permite-nos também criticar a maneira como essas vozes emergiram nos períodos de barulho, ao não impedirem a violência.

Identificamos que houveram duas tentativas principais de intervenção sobre o edifício: a primeira em 1987, durante a administração de Jânio Quadros (PTB, 1986-1988), quando esse ordenou a demolição do imóvel, e a partir de 2002, quando o São Vito foi incluído em um amplo programa de reurbanização do centro da cidade anunciado pela prefeita Marta Suplicy (PT, 2001-2004). Decidiu-se pela reforma do imóvel, através de sua total desapropriação. Contudo, a última ação daquele governo foi a desocupação do prédio, no fim da gestão, em 2004. No entanto, o novo governo eleito abandonou aquele projeto e passou a investir na demolição do prédio.

As notícias publicadas pela imprensa sobre o São Vito versavam principalmente em torno dos seguintes assuntos: instalações físicas inadequadas e risco de incêndio, criminalidade e violência no condomínio e projetos públicos para o edifício ou seu entorno. Contudo, independentemente da informação veiculada, observamos que alguns elementos teceram um estigma para o edifício que não correspondia à sua realidade. Um exemplo significativo foi a sua nomeação de favela ou cortiço vertical, remetendo a uma situação de ilegalidade. Ainda que falsa, essa imagem legitimou a intervenção direta do poder público sobre o condomínio particular.

Relativamente ao segundo período de barulho chamou a atenção a discussão do projeto para o edifício no âmbito do Conselho Municipal de Habitação (CMH). Criado em 2003, durante a gestão do PT, esse novo instrumento conta com a participação equitativa de movimentos sociais, governo e outros setores interessados na questão da habitação, como a academia e ONGs. O São Vito foi pautado nesse conselho em duas ocasiões. Durante a gestão de Marta, quando aprovou-se o repasse de recursos do Fundo Municipal de Habitação para o Fundo de Arrendamento Residencial da Caixa Econômica Federal (FAR CEF), para que o prédio fosse reformado no âmbito do Programa de Arrendamento Residencial (PAR CEF). O projeto era de autoria dos arquitetos Roberto Loeb e Helena Saia e contava, dentre outros, com elevador panorâmico e passarela de vidro ligando o edifício ao Mercado Municipal. Em 2008, durante a administração de Kassab (DEM), os movimentos sociais reivindicaram que o abandono da reforma, anunciado sem passar pelo CMH, voltasse a ser debatido dentro daquela instância. Contudo, a prefeitura alegou que não seria possível destinar o edifício reformado às classes populares (sem apresentar os dados técnicos que embasavam tal afirmação), e prometeu aos movimentos que caso o edifício fosse repassado à Siurb, viabilizando sua demolição, seriam-lhes oferecidas unidades de HIS no centro. Diante dessa negociação, o repasse do São Vito à Siurb foi aprovado quase unanimemente no CMH em junho de 2008. Outro passo nessa direção foi a desocupação do edifício Mercúrio, vizinho ao São Vito, em fevereiro de 2009. Porém, uma ação civil pública junto ao Ministério Público contra a demolição de ambos imóveis mantém as obras paralizadas.

Defendemos que o barulho produzido em torno do São Vito não correspondeu, portanto, à fala tal como defendida por Arendt, mas a um ruído que impediu uma discussão mais profunda sobre a pertinência de se intervir em um condomínio privado ou sobre o que essa condição deveria impor como restrições a tal intervenção. Em suma, a imagem construída a seu respeito colaborou para torná-lo uma questão pública.

  1. O Cesad - Seção de Produção de Bases Digitais da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP – conta com uma hemeroteca que reúne publicações dos periódicos O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde e Folha de São Paulo desde 1980.
  2. Emurb – Empresa Municipal de Urbanização. Trata-se de uma autarquia vinculada à Secretaria Municipal de Infra-Estrutura e Obras (Siurb)

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