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secao 4!

Reflexões perceptivas:

uma intervenção na Marginal Pinheiros

Deborah de Carvalho Almonacid

Carlos Roberto Zibel Costa

Foi a preocupação latente de evidenciar as possibilidades de vivência dos espaços urbanos e públicos, e de identificá-los com aqueles que deveriam deles usufruir, o que determinou a escolha da temática desse trabalho. Acredita-se que a arte urbana corresponde a uma alternativa válida para a ocupação do espaço público, uma maneira surpreendente, não só de utiliza-lo, como também de sensibilizar as pessoas para a importância que ele tem na construção da cidade, e na própria vivência que se tem dela.

"Passam pela cidade, anônimos e desenraizados, os trabalhadores que compõem a massa urbana. Para eles a cidade parece reduzir-se ao longo e cansativo trajeto de casa ao trabalho, ao tempo perdido do transporte".(1) Essa frase, que parece ilustrar tão bem a realidade urbana da cidade de São Paulo, também é singular para a compreensão do seu espaço urbano atual, no qual se vêem uma multiplicação dos chamados não-lugares.

Quando se pensa na cidade em que vivemos atualmente, tem-se a impressão de que o automóvel assumiu as rédeas de organização e de seu planejamento urbano, e todo o seu desenvolvimento posterior se dá em sua função. E todo esse imenso sistema rodoviário, em sua maioria, não é acompanhado por espaços que se ofereçam ao convívio público ou que incentivem vínculos e relações, limitando-se à passagem, ao trânsito, seja de veículos ou de pessoas.

"O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude".(2) Logo, as inúmeras vias de trânsito espalhadas por toda a cidade, que se estabelecem dessa forma, estão também gerando inúmeros não-lugares.Dentre elas, aquelas vias de trânsito dito expresso acentuam ainda mais a constituição dos não-lugares. Esses percursos rodoviários evitam por necessidade funcional todos os lugares memoráveis dos quais se aproximam, apenas restringindo-se a comentá-los, a apontá-los. Destaca-se entre eles, a marginal do rio Pinheiros, como simbólica na produção do espaço contemporâneo da cidade, e também como arquétipo de não-lugar.

Considerando-se o próprio rio como o elemento fundamental na definição desse espaço, pode dizer que se as marginais do rio Pinheiros se converteram em espaços apenas de passagem, sem relação ou vínculo com os transeuntes, seu caráter de não-lugar também se deve à irrelevância ou ao ostracismo em que se encontra o próprio rio.

"O rio sujeitou-se a constantes inversões de curso, a alterações hidrológicas de vazão e a mudanças na sua essência. Já não se reconhece o corpo d'água capaz de receber seus tributários, percorrer seu leito meândrico e depositar seus sedimentos na época das grandes vazões. Perdeu suas características, cedeu aos caprichos humanos e às suas necessidades. Submeteu-se aos projetos e anseios do progresso".(3)

Pode-se dizer que conforme se foi perdendo o papel do rio Pinheiros como espaço integrante e constituinte da cidade, também se foram perdendo as relações e os vínculos que os habitantes da cidade estabeleciam dentro desse espaço e também as que se estabeleciam diretamente com ele. A partir do momento em que o rio é isolado do convívio da população, delimitado pela ferrovia e pelas vias de tráfego, ele se torna um coadjuvante de suas próprias margens, tornando-se praticamente invisível para a população da cidade.

Procurou-se, então, pensar em como uma intervenção artística poderia tornar o rio visível.Concluiu-se que se se procurasse reforçar ainda mais a alienação do rio, talvez se pudesse alterar de forma definitiva a percepção que se tem dele. Isto é, mais do que se preocupar em chamar a atenção para o rio propriamente dito, decidiu-se por chamar a atenção para o seu isolamento.

Decidiu-se pelo uso de espelhos, pois, além de funcionar como um modo de ocultar o que está por trás de si, ele também reflete quem está olhando, mas, mais do que as próprias pessoas que olham, também a cidade que está por trás. Sua presença poderia trazer uma reflexão acerca da cidade que se constrói, alienada e distante do convívio do rio Pinheiros.

"Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho".(4)

Uma intervenção que utilize espelhos para dizer algo, certamente também pressupõe uma escolha cuidadosa do seu sítio de inserção, pois, afinal, o aspecto mais valioso de sua presença é o reflexo do que têm adiante, isto é, a representação que ele cria.

Delimitaram-se as áreas de intervenção entre aquelas em que o espelho se volta para fora - nos parques do Povo e Villa-Lobos - e aquela, na estação Pinheiros da CPTM, em que ele se volta para dentro, criando na plataforma de espera um ambiente de calma e inércia como aparentado pelo rio.

Definiram-se as alturas dos espelhos de acordo com o que se queria revelar ou ocultar. Constatou-se, então, que o avesso do espelho poderia permitir aos espectadores vislumbrar o que se tapa com a superfície do espelho, mas de forma estática; se as costas do espelho fossem recobertas por uma grande foto, em escala real, daquilo que se esconde por trás dele, se permitiria por um breve momento que se entrevesse o que se oculta.

Além disso, se optou por criar algumas "janelas" nas fachadas espelhadas, com o mesmo papel elucidativo das tais costas dos espelhos. Essas aberturas, colocadas em pontos determinados, servem também para dar legibilidade à intervenção, elas foram concebidas como uma maneira de revelar aos que olham, o seu motivo.

Por fim, os espelhos foram pensados para estruturar-se como se fossem grandes fachadas de vidro; criou-se uma estrutura de pilares metálicos de perfil "I" - medindo 13x15cm e engastados ao piso de concreto que margeia as vias -, aos quais se fixam os espelhos, divididos em módulos de 1.60 x 2.40m, sendo que o módulo superior ganharia uma inclinação de 30º em relação a seu eixo vertical. A fixação dos espelhos aos pilares metálicos é feita através de parafusos articulados do tipo "spider glass", o que lhes confere uma maior flexibilidade, permitindo que se flexionem com a ação dos ventos.

  1. Trecho de texto do sociólogo Laymert Garcia dos Santos ao fotógrafo Paolo Gasparini. In: PALLAMIN, Vera (Org.). LUDEMANN, Marina (Coord.). Cidade e Cultura: Esfera Pública e Transformação Urbana. São Paulo, Estação liberdade, 2002 p.118.
  2. In: AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a Uma Antropologia da Supermodernidade; trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas, São Paulo, Papirus, 1994 p.95.
  3. In: São Paulo (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. O rio Pinheiros. Organizado por Fernando Coelho. São Paulo, SMA, 2002, p.26.
  4. In: CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis; tradução Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p.54.

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