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secao 4!

LINHA 647A-10 |

ORIGEM(NS) E DESTINO(S)

ELAINE TERRIN

LUÍS ANTÔNIO JORGE

INTRODUÇÃO

A cidade é múltipla. Seus sons, cores, texturas, cheiros estão presentes em uma ordem que pode nos parecer, à primeira instância, caótica, isto porque não seguem uma convenção/sintaxe de imediata apreensão. Ela exige que haja por parte daquele que pretende compreendê-la um esforço em definir um código de leitura de sua multiplicidade de signos a fim de chegar a um significado. E este esforço foi o norteador deste trabalho. A tentativa de decifrá-la foi o seu grande objetivo.

Dentre as inúmeras leituras possíveis, neste Trabalho Final de Graduação, o assunto escolhido foi a precária condição dos deslocamentos diários periferia-centro através do transporte público dentro da cidade de São Paulo. Isto porque em uma cidade que se formou segundo padrões periféricos de urbanização, tais deslocamentos trazem consigo muito de sua estruturação ao longo do tempo, bem como de sua situação atual. É como ler sua história, seu presente e até mesmo seu futuro através das suas próprias marcas, através de suas próprias cicatrizes.

Metonimicamente, foi escolhida, através de critérios que serão posteriormente explicados, uma linha de ônibus como objeto de estudo deste trabalho, um microcosmo do deslocar. Sua leitura buscou desde o princípio se dar através da percepção daquele que se desloca, uma visão mais próxima à realidade humana do dia a dia desta cidade. Olhar para a cidade pelo ônibus, bem como olhar para o próprio ônibus como um lugar, com suas histórias, seus problemas, um lugar definido por seus hábitos e usos, tirando-o assim do anonimato do cotidiano.

Quanto à forma de representação desta leitura optou-se pelo vídeo por ser uma mídia poli-sensorial, juntando o visual e o auditivo, além de possibilitar o registro daquilo que se acredita muito importante neste trabalho, o movimento, a velocidade do deslocar, a percepção sempre em movimento.

Dessa forma pretende-se gerar uma nova maneira de abordar e pensar a cidade contemporânea, usando este exercício de percepção como um amplificador às leituras possíveis da cidade que só têm a enriquecer o próprio modo de pensar e conceber uma arquitetura mais condizente com seu tempo.

PONTO INICIAL: A ESCOLHA E O PLANEJAMENTO DA VIAGEM

Definido o mote da leitura da cidade a ser realizada e o modo de representá-la, o próximo passo era escolher a linha de ônibus a ser estudada. Na primeira etapa desta escolha, chegou-se à região sudoeste como região de interesse devido às recentes obras referentes ao sistema de transporte público: a linha lilás e amarela do metrô, construção de corredores e terminais de ônibus, obras que ilustram a demanda de transporte existente na região e confere à mesma uma dinâmica de transformações. Além disso, nestas regiões estão localizados bairros periféricos conhecidos por suas carências sociais e altos índices de violência, como Capão Redondo e Campo Limpo. Definido o eixo regional a ser estudado, partiu-se para a escolha da linha. Para tanto foram utilizados os seguintes critérios junto às suas respectivas justificativas:
• itinerário longo por intensificar a questão do deslocamento;
• trajeto que percorresse diferentes regiões de São Paulo por acreditar que isto enriqueceria a análise a ser realizada por trazer diversidade quanto a paisagem, os passageiros e seus trajetos;
• tivesse como ponto inicial um bairro periférico de São Paulo e ponto final algum bairro de São Paulo que seja historicamente porta de entrada da cidade;
• atravessasse os rios Pinheiros ou Tietê por ser uma imagem simbólica de transpor o limite entre a cidade extra e intra rios;
• fluxo de pessoas significativo.

Após a avaliação de várias linhas através destes critérios adotados chegou-se a linha 647-A Valo Velho-Pinheiros. Segue algumas de suas características:
Letreiro de ida: PINHEIROS
Letreiro de volta: VALO VELHO
Contratação: CONSÓRCIO SETE
Empresa: TRANSKUBA TRANSPORTES URBANOS LTDA.
Terminal Primário (TP): Rua Ciclades, 0 – Valo Velho
Terminal Secundário (TS): Av. Brigadeiro Faria Lima, 244 - Pinheiros
Data de criação: 13/12/2003

Escolhida a linha, partiu-se para o como abordá-la. Como lê-la? Que metodologia adotar para melhor compreendê-la? Como afirma FERRARA, “não há método fixado e, sobretudo, predeterminado” para leitura do objeto não-verbal, “não se fala em método, mas em procedimentos metodológicos, porém a sua operacionalização depende da natureza e da dinâmica de cada objeto lido.”

“Quando se fala em método possível, pretende-se salientar três aspectos:
1. há necessidade de se estabelecer um modo de ler;
2. esse modo se refaz ou se completa a cada leitura, visto que o próprio objeto lido sugere, na sua dinâmica, como deve ser visto;
3. é necessário ter presente que o que vemos no objeto lido é resultado de uma operação singular entre o que efetivamente está no objeto e a memória das nossas informações e experiências emocionais e culturais, individuais e coletivas; logo, o resultado da leitura é sempre possível, mas jamais correto ou total;
4. é necessário ousadia nas associações para que se possa flagrar uma idéia nova, uma comparação imprevista, uma hipótese explicativa inusitada.”

E assim se deu esta leitura, o método foi se moldando e se adaptando conforme a maior aproximação à linha a ser estudada. No início pouco se sabia sobre o resultado final deste processo, apenas que a intenção era ouvir aquele que tinha algum vínculo com a linha, sendo passageiro esporádico, passageiro de todos os dias e os funcionários.

A edição foi ditada pelo próprio material captado. Dentro do que se obteve de respostas pôde-se definir temas e especificar a narrativa do vídeo. Claro que o próprio questionário já delineou o material que iria ser levantado, no entanto, apesar deste direcionamento o produto destas entrevistas era imprevisível.

Já durante o processo de filmagens e entrevistas, duas palavras – origem e destino - começaram a surgir como temas a serem trabalhados, quase que naturalmente, por já fazerem parte do vocabulário próprio das linhas de ônibus e acabaram por nortear a narrativa do vídeo.

origem [Do lat. origine] S. f. 1.Princípio, começo, procedência. 2. Naturalidade, nascimento. 3. V. pátria. 4. Ascendência, progênie. 5. Fig. Princípio ou causa.

destino ¹ . [Dev. de destinar] S. m. 1. Sucessão de fatos que podem ou não ocorrer, e que constituem a vida do homem, considerados como resultantes de causas independentes de sua vontade; sorte, fado, fortuna. 2. P. ext. Aquilo que acontecerá a alguém; futuro. 3. Fim ou objeto para que se reserva ou designa alguma coisa; aplicação, emprego. 4. Lugar aonde se dirige alguém ou algo; direção.

destino ². S. m. Bras. Pop. F. Sinopada de desatino.

Definem o início e o fim, no caso da linha, o início e o fim de uma viagem, aqui entendida como uma ida, bairro-centro, e uma volta, centro-bairro. Para se ter uma idéia, uma dupla, motorista e cobrador, realiza três viagens por dia. Se por algum motivo, normalmente o próprio trânsito, as viagens atrasarem muito, a última delas é cancelada, pois no caso dos motoristas da manhã atrasaria a rendição para o motorista da noite e no caso dos motoristas da noite ficaria muito tarde para a volta à garagem.

No entanto este mesmo vocabulário, origem e destino é muito mais amplo e pode ser aplicado também quanto a outras viagens, podendo ser uma simples viagem até o trabalho feita todos os dias no mesmo horário ou até mesmo a grande viagem da vida. Percebendo estes dois universos como possibilidades, isto é, o universo ônibus e o universo da vida dos passageiros, ambos interligados pelo uso da linha, resolveu-se explorar a relação entre ambos como forma de organizar a narrativa do vídeo.

E entre este começo e fim o que há no meio? Quais são os caminhos possíveis? O que é este caminho? São os trajetos diários das pessoas, o caminho percorrido pelo ônibus e o caminho trilhado por cada um dos entrevistados até o dia hoje, são todos estes caminhos. Seguindo a mesma linha de palavras já pertencentes ao vocabulário da linha procurou-se algo que tratasse deste caminho, chegando-se à palavra itinerário.

itinerários. [Do lat. itinerariu.] Adj. 1. Concernente ou relativo a caminhos. ? S. m. 2. Descrição de viagem; roteiro. 3. Caminho que se vai percorrer, ou se percorreu. 4. Caminho, trajeto, percurso.

Estas três palavras chaves – origem, itinerário e destino - determinaram assim os temas segundo os quais o material coletado seria organizado. Agora era preciso definir como estes dois universos - ônibus e vida dos passageiros - conversariam durante a narrativa, de que maneira poderiam se complementar, mas ao mesmo tempo em que fosse possível identificá-los individualmente.

Foi então que, para a passagem de um universo ao outro, elaborou-se um jogo de palavras explorando a mudança de número das três palavras-tema, no singular – origem, itinerário, destino – quando faz referência a linha de ônibus, e no plural – origens, itinerários, destinos – quando faz referência a vida das pessoas.

Esta foi a maneira encontrada para organizar o material falado do vídeo. Agora era preciso pensar como inserir as imagens coletadas e como estas duas linguagens iriam conversar de forma a trazer uma terceira informação quando associadas, procurando não ter nunca a imagem como mera ilustração direta da fala.

O olhar no vídeo foi estruturado de forma a narrar a busca para desvendar o microcosmo ônibus, fazendo surgir assim um terceiro universo, o da própria viagem exploratória deste trabalho.

Quanto as etapas da edição elas se estruturam da seguinte maneira. Após a colheita de todas as entrevistas e algumas imagens, passou-se pelo processo de transcrição das entrevistas por acreditar que apenas ouvir as entrevistas poderia trazer prejuízo quanto ao conteúdo selecionado em comparação a tê-las escritas e assim ter maior liberdade e controle sobre seu conteúdo. O próprio ato de transcrevê-las tornou-se uma etapa destas informações. Isto fez com que houvesse uma nova demanda de imagens devido às associações que começavam a surgir com o processo de transcrição. Assim, partiu-se para uma nova saída atrás de imagens.

Já definidos os temas a serem trabalhados, as falas começaram a ser recortadas e agrupadas conforme suas afinidades ou sugestões preliminares. O mesmo processo se deu quanto às imagens. Tendo ambas sido selecionadas, iniciou-se um processo de refinamento desta seleção.

A elaboração dos gráficos foi feita ainda durante o processo de seleção de falas e imagens. A inserção dos mesmos foi uma etapa que apresentou bastante dificuldade, pois se trata de uma linguagem muito distinta da imagem real filmada, e fazer com que todas conversassem foi um desafio.

A trilha sonora foi o último elemento a ser inserido, pois exige que haja um corpo do vídeo mais bem formado e um ritmo dado pela própria seqüência de imagens e de temas.

Por fim, passou-se por um processo de ajustes mais fino que exige a afinação (sincronização?) das imagens com as entradas das falas e gráficos e a música ao fundo. Neste momento foram utilizados efeitos do próprio programa de edição para o tratamento das passagens de imagem e som. E por último foi feita a equalização do áudio.

PONTO FINAL|CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de discorrer sobre as considerações finais, vale lembrar que sendo o grande objeto de estudo deste trabalho a cidade, sua diversidade impossibilita que algum resultado definitivo seja alcançado. Sabia-se desde o seu princípio que este seria um exercício de leitura, onde o que se pretendia era provocar e ampliar os modos de ler a cidade e propor uma possibilidade de leitura dentro do tema deslocamento urbano e cotidiano.

A aproximação à realidade que se desejava estudar foi essencial para desenvolver o trabalho. Foi sempre presente um caráter exploratório e investigativo. Queria-se enxergar na opacidade do cotidiano, que por estar tão presente e próximo aos olhos acaba se tornando turvo e irreconhecível. Sua presença é tão forte e natural que se torna imperceptível.

Algumas surpresas pontuaram este trabalho. Primeiro foi quanto à abertura e doação das pessoas entrevistadas. Mesmo sendo surpreendidas durante o caminho ou a espera do ônibus, ou mesmo no caso dos motoristas quando já estavam para voltar para suas casas, se dispunham a gastar seu tempo respondendo perguntas que não trariam nenhum ganho imediato para eles. Esta postura incentivou ainda mais a vontade de mostrar o vídeo finalizado a estas pessoas, para que pudessem visualizar o que foram responsáveis em produzir, afinal sem este material seria impossível chegar ao resultado esperado.

Outra surpresa foi quanto aos vínculos existentes entre as pessoas, principalmente os funcionários, com a linha de ônibus. Trata-se de uma linha antiga que ainda mantém a característica de ser uma linha longa - hoje existe a tendência de trabalhar com linhas mais curtas, política que busca facilitar o tráfego das mesmas, pois evita que carros da mesma linha fiquem travados todos ao mesmo tempo no trânsito – o que a torna mais cansativa. Assim, mantiveram-se apenas os motoristas e cobradores que conseguem lidar com este cansaço e a maioria deles trabalham na linha quase que desde sua inauguração. Isto faz com que o vínculo entre funcionário e linha seja algo criado e fortalecido durante anos. Existe uma relação de carinho com a linha, e este sentimento é mantido através de verdadeira dedicação dos funcionários em exercer suas funções com grande competência. Além disso, percebeu-se que a grande maioria dos funcionários mora próximo ao trajeto da linha na parte mais periférica do caminho, isto é, no bairro do Capão Redondo, o que gera um laço de vizinhos entre estes funcionários e os passageiros que também vivem nessa região.

Certas frases chamaram a atenção para algumas posturas recorrentes aos entrevistados. “Por enquanto eu sou empregada doméstica” - esta frase mostra que o tempo que dita a vida das pessoas é o tempo do agora; no momento sou empregada, mas se a vida mostrar outro rumo será este o caminho escolhido. A realidade parece estar muito mais presente no cotidiano destas pessoas, é ela a lei que rege suas decisões, não sobrando muito espaço para os seus sonhos. Isto faz com que certo conformismo seja criado como forma de proteção às decepções que possam ocorrer. Elas são anteriormente evitadas. Mas os sonhos encontram seus espaços, existe uma vontade de melhora, de seguir em frente, de subir na vida, mesmo que dentro da realidade conhecida. Por exemplo, a grande maioria dos cobradores tem o sonho de serem motoristas, cargo imediatamente superior, isto é, seguir por um caminho seguro e natural. Foi esta postura quanto ao futuro destas pessoas que desencadeou todo o raciocínio sobre as palavras chaves da narrativa: origem, itinerário e destino.

Já quanto a questão representativa, conclui-se que o vídeo mostrou ser uma mídia possível para expressar a leitura da cidade de maneira sensível e expressiva. Claro que o maior domínio técnico dos meios possibilitaria um resultado por vezes mais aprofundado, mostrando o quanto este domínio é importante para o expressar-se.

Por fim todo este processo foi importante quanto exercício de expressão de uma leitura. Os processos de leitura, captura de informação, organização segundo um código e o encontrar um significado foi um caminho árduo, mas que mostrou a possibilidade de uma nova leitura possível. Um olhar mais humano sobre a cidade, o que a torna muito mais real e verdadeira. Mostrou o valor do cotidiano, do dia a dia, e quantas possibilidades de leitura ainda existem. Foi satisfatório quanto resultado de uma possibilidade de leitura. Mostrar que existem formas mais sensíveis de se ler a cidade e que estas leituras podem e devem ser aplicadas para se compreender melhor a cidade atual e servir como ferramenta para o pensar uma cidade melhor.

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