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secao 4!

Mistério-Bufo |

Oficina

Ana Luisa Carmona Ribeiro

Luciano Migliaccio

No prefácio à 2a edição de Mistério-bufo, que aponta para o futuro “atualizador” da peça o caminho a seguir, Maiakovski escrevia:
“No futuro, todos aqueles que quiserem recitar, encenar, ler, publicar Mistéria-Buf, que mudem o conteúdo, tornando-o contemporâneo, atual, imediato”.

Apesar da recomendação expressa do poeta, atualizar o Mistério-bufo tornando-o ‘do momento’ certamente não é tarefa fácil. A estrada que em 1917 levou a classe operária à revolução se encobre em névoa.

Por outro lado, me lembro de uma “anedota” recente, muito interessante, que vimos nos jornais no auge da crise em 2009. Contava como na Alemanha as edições d’O Capital estavam se esgotando rapidamente nas livrarias. Vejam só, os alemães buscando respostas à crise numa obra do século retrasado! Enquanto isso os economistas e analistas em geral se haviam calado, diante da falência total de suas progressistas previsões.

Estará a névoa começando a dissipar-se?

Não saberia dizer. Mas acredito que a “atualização” do mistério maiakovskiano certamente não passa por uma revisão daqueles princípios “do século passado”. Não ousaria, assim, abandonar a estrada e procurar outros caminhos, menos tortuosos, como mal fez nosso economista (agora debruçado sobre O Capital).

Assim, mantivemos o rigor na caracterização de classes dos 2 grandes blocos de puros e impuros, procurando apenas atualizá-los de acordo com referências mais contemporâneas. Os impuros mantêm sua identidade de classe, encontrando a expressão de seu heroísmo coletivo na forma do coro. Os puros mantêm o caráter de máscaras sociais, e estão mais grotescos do que nunca, graças também à atualização das referências.

O Rei da Vela, encenado pelo Oficina em 1967 (e que virou filme anos mais tarde) me parece responsável em grande parte pela fixação de diversos elementos formais que usamos na concepção dos personagens puros. Os personagens e figurinos de Eichbauer – carregados tanto de referências plásticas aos clássicos bufões como às formas do teatro de revista, carnaval e cultura de massas no Brasil – renascem no Americano, na Dama-histeria, nos anjos-vedetes que habitam o paraíso e na aparência galinácea dos diabos. Sem falar nos Abelardos, que ressurgem na história recente de nosso país e emprestam sua essência farsesca às máscaras de Lula e Dilma.

Em princípio próxima à referência dos prozodezhda russos, pela identificação entre os impuros através de seus trajes relativamente uniformes, a concepção para o figurino do coro remeteu diretamente à um tipo de traje mais leve. Formalmente, os trajes propostos se aproximam de um parangolé, ou ainda das capas para serem montadas no corpo de Oiticica. Outra referência a que poderíamos remeter é o Divisor, de Lygia Pape, que em 2010 reapareceu na Bienal de São Paulo. Importantes ainda são os figurinos do grupo de agitação cultural Coro de Carcarás, que reúne atores não profissionais e transpõe para seus figurinos a precariedade radical de sua própria condição material, usando materiais simples e poucos cortes nos figurinos. Meus desenhos para os impuros mostram, essencialmente, o coro proletário vestido em pedaços de pano, que podem ser vestidos, combinados e arranjados de diferentes maneiras, podendo receber também aplicação de texto ou versos nos tecidos, assim como projeções sobre os mesmos.

A pintura de El Lissitsky (Bateram nos brancos com a cunha vermelha) também trouxe para o coro dos impuros uma referência que selou o formato da cunha como forma do coro nos momentos de embate com os puros, como os que se passam no interior da arca. A partir daí, ganhou força nos desenhos a idéia de que a cada momento do coro corresponde uma forma equivalente. Assim, no 1o ato teríamos um coro-dilúvio (azul) lavando o teatro como uma onda, no 2o ato o coro-cunha (vermelho), e ao longo dos atos seguintes o coro se transformaria novamente, adquirindo novas cores até finalmente, ao atingir a terra (prometida), chegar-se a um coro que veste as 3 cores básicas (azul, amarelo e vermelho).

Quanto à sugestão do espaço para a encenação, confesso que não pensei duas vezes antes de eleger o Teatro Oficina. Diante da necessidade apresentada de simultaneamente preservar os princípios originários do texto de Maiakovski e atualizá-lo, a trincheira do oficina era perfeita. Além de abrigar o grupo de Zé Celso, que pariu o Rei da Vela 3 décadas depois de Oswald e que segue até hoje na luta contra o conservadorismo teatral, o edifício-rua de Lina Bo Bardi e Elito é verdadeiro manifesto arquitetônico por um teatro vivo, libertário, incômodo, atual, desmistificador.

Em minha proposta, na cena de abertura os impuros entrariam pelas portas do teatro, já em formação de coro, como uma grande onda, e com um arauto anunciando manchetes extraídas de jornais. As manchetes, das mais recentes, contariam como a crise está afetando a vida dos trabalhadores.

Aqui, o objetivo é re-significar a metáfora do dilúvio, que para Maiakovski representava o turbilhão da revolução socialista. Para nós, o turbilhão é outro, que agora enfrentamos, a crise mundial, onde subsistem apenas fragmentos do capitalismo que não parece encontrar saída...

A mesma lógica de re-significação que orienta a substituição do dilúvio-revolução pelo dilúvio-crise (zona dos fragmentos do capital) no 1o ato, pede que onde em 1921 se colocava a zona dos fragmentos, se coloque agora uma nova zona, que chamaríamos, talvez, zona de bloqueio. Este novo 5o ato pensamos como uma assembléia sindical onde um líder pelego tenta convencer os impuros a “recuar” ao paraíso.

Ao final, quando recusam o recuo rompendo o bloqueio, a terra prometida de que tanto falavam os impuros se apresenta, agora como simplesmente terra. A proposta aqui é quebrar a representação que ocorria dentro do espaço do teatro, levando todos para fora, livre de máscaras, prontos a ver a realidade com olhos livres. Uma ruptura, ainda que momentânea, com o teatro da realidade repleta de farsantes que nos cerca.

Aqui, toda intervenção do coro (mas em especial esta final) tem o papel de gerar um “mundo dual”, em relação ao “mundo da representação” que as figuras dos impuros, diabos e habitantes do paraíso sugerem, promovendo a identificação do público consigo. Penso que o conflito final – que revela o sindicalista como capitulador (ao propor o recuo) e opõe o coro ao traidor de seu grupo – poderia ser capaz de produzir o efeito de catarse necessário à uma identificação definitiva da massa do público com o coro, que seria convidado a integrar-se a este. Os prozodezhda-parangolés do coro se multiplicariam sendo oferecidos ao público que poderia se travestir, promovendo o derradeiro carnaval que ocupa a rua, te-ato.

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