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Reabilitação Urbana na região da Estação da Luz

uma proposta fundamentada no reconhecimento do patrimônio histórico

Flávia Taliberti Pereto

Artur Simões Rozestraten

Atualmente a temática de questões urbanas quanto ao crescimento, o desenvolvimento e o futuro das cidades tem sido muito discutida. Um importante exemplo da representatividade de tais assuntos é a Exposição Mundial (Expo) de 2010, realizada em Xangai, China, que tem como tema “Cidade Melhor, Vida Melhor” onde a vida nas cidades é discutida a partir de quatro frentes: “Cidades Habitáveis”, “Urbanização Sustentável”, “Proteção e Patrimônio Histórico” e “Inovação Tecnológica”. A partir desses quatro temas da Expo 2010, expostos no jornal “O Estado de São Paulo” (25/04/2010), vê-se que as questões do cuidado com o patrimônio histórico e da relação entre cidadão e cidade são de grande importância para o desenvolvimento e o crescimento das cidades atualmente, assunto que será bastante discutido nessa pesquisa.

Na cidade de São Paulo os projetos de reabilitação e revalorização urbana propostos e desenvolvidos no centro da cidade também vêm gerando grandes discussões sobre o tema e a partir da representatividade do assunto, o presente trabalho pretende desenvolver um projeto de reabilitação de um trecho do centro da cidade de São Paulo, mais especificamente na região da Cracolândia, onde está sendo discutido o projeto Nova Luz, como forma de identificar e desenvolver questões quanto ao papel do patrimônio histórico nessas políticas de revalorização de centros urbanos tomando como exemplo o caso da cidade de São Paulo.

“Como qualquer organismo vivo, a cidade permanentemente se transforma e vai se tornando o registro implacável da própria sociedade”. A frase de Benedito Lima de Toledo mostra que a preservação do patrimônio histórico é um fator essencial para a sociedade e para a vida da cidade, pois resgata a sua identidade e gera orgulho para os seus habitantes ao mesmo tempo em que explora o caráter mutável de uma cidade em desenvolvimento, fator que os patrimônios arquitetônicos têm que acompanhar para poder sobreviver.

É muito importante que os cidadãos tenham um relacionamento saudável com o centro de suas cidades, pois isso os atrai de volta e dinamiza a vida da região, o que melhora a imagem desses centros urbanos. “A preservação associou-se à necessidade de manter a diversidade cultural da nação e inseriu o passado ou a tradição como referenciais no processo de desenvolvimento econômico e cultural” (CASTILHO, 1998, p.31). As características únicas e próprias de cada centro histórico são a base para a melhoria da qualidade de vida nesses locais.

De acordo com Vargas e Castilho (2009) as políticas de recuperação de áreas centrais no Brasil começaram a ser organizadas no ano de 1979, a partir da criação de duas entidades na estrutura do Ministério de Educação e Cultura: a Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Fundação Pró-Memória. Nove anos depois foi realizado no Brasil o “1° Seminário para a Revitalização de Centros Históricos” de onde foi elaborada a “Carta de Petrópolis”, documento que organiza as premissas para a preservação de locais históricos urbanos.

Nesse mesmo período estavam sendo desenvolvidos na Europa projetos de Preservação Urbana dos centros históricos, como no caso de Bologna, na Itália e em Madrid, na Espanha. Essa tipologia de intervenção inclui a preservação e a restauração de edifícios históricos, incorporando-os nos projetos de reestruturação das atividades no centro. O forte significado cultural dos centros históricos europeus conseguiu conter o processo de deterioração e impedir as demolições em larga escala, resultando em idéias contrárias ao que estava sendo realizado na década anterior (1950/60), principalmente nos centros de cidades norte-americanas, onde a idéia principal era a de Renovação Urbana, tipologia de intervenção que assumia a preferência pelo novo e realizava grandes demolições sem nenhuma preocupação com o patrimônio histórico existente.

Segundo a historiadora Françoise Choay (2001), até o século XIX pouco se discutia quanto ao espaço urbano e, o conceito de cidade como um bem patrimonial só começou a ser discutido depois da Segunda Guerra Mundial. Mas foi só a partir da década de 1990 que essa idéia realmente floresceu.
“A conversão da cidade material em objeto de conhecimento histórico foi motivada pela transformação do espaço urbano que se seguiu à revolução industrial: perturbação traumática do meio tradicional, emergência de outras escalas viárias e parcelares. É, então, pelo efeito da diferença (...) por contraste, que a cidade antiga se torna objeto de investigação.” (CHOAY,2001, p.179)

Mais adiante, no mesmo texto, Choay discute sobre a presença do patrimônio histórico nas cidades:
“Quer o urbanismo se empenhasse em destruir os conjuntos urbanos antigos, quer procurasse preservá-los, foi justamente tornando-se um obstáculo ao livre desdobramento de novas modalidades de organização do espaço urbano que as formações antigas adquiriram sua identidade conceitual. A noção de patrimônio urbano histórico constituiu-se na contramão do processo de urbanização dominante.” (CHOAY,2001, p.179)

A partir desse pensamento conclui-se que o patrimônio histórico edificado sempre foi um ponto discutido nas políticas de intervenção urbana e fez parte do processo de formação dessas políticas agindo como uma resistência ao desenvolvimento e implantação de determinadas intervenções.

Com essa breve contextualização histórica, observa-se que as políticas de recuperação de áreas centrais no Brasil foram desenvolvidas no período da Preservação Urbana, aproximando-se do modo de intervenção europeu onde as estratégias de recuperação de áreas urbanas são fundamentadas na preservação do patrimônio histórico. Dessa forma, tanto o estudo histórico quanto o projeto desenvolvidos nesse Trabalho Final de Graduação terão como base os ideais da Preservação Urbana, culminando na elaboração de um projeto urbano para um trecho de cidade com base na presença e na preservação do patrimônio histórico e arquitetônico existente.

Existem diversos projetos de reabilitação de centros urbanos onde o patrimônio histórico é a base para o seu desenvolvimento como, por exemplo, o projeto-piloto de Lina Bo Bardi para o Pelourinho em Salvador e o projeto elaborado numa cooperação entre Espanha e Cuba para a região da Avenida Malecón em Havana, Cuba. Dessa forma, através de pesquisas de casos de requalificação de centros históricos, tanto em cidades estrangeiras quanto brasileiras, foi estudada a maneira como o patrimônio histórico desses locais foi levado em consideração para a realização de tais projetos, buscando formar uma base teórica consistente que auxilie no desenvolvimento de um projeto para uma pequena área do centro de São Paulo. Além disso, também foi estudada a forma como foi tratada a população e a vida cotidiana existente nesses centros urbanos, visando propor um projeto que respeite e inclua a população residente no local e melhore as suas condições de vida, atraindo para o local uma dinâmica saudável no dia-a-dia.

Concomitantemente a essa pesquisa teórica, foram realizadas visitas ao centro da cidade de São Paulo, para selecionar locais representativos para a história da cidade e que necessitem de uma proposta de reabilitação. Essas visitas também tiveram a intenção de vivenciar esses espaços da cidade e entender a sua dinâmica quanto ao horário de funcionamento de seus pontos comerciais, circulação de veículos, utilização das calçadas e os focos de maior movimentação durante o dia e durante a noite e também os tipos de usos do solo. Após a escolha definitiva, foram realizadas outras visitas ao centro histórico da cidade, dessa vez focadas apenas no local escolhido, com a intenção de estudar detalhadamente a área e o seu entorno próximo para que fosse desenvolvido um projeto coerente para o local.

A área central de uma cidade abrange um bairro ou um conjunto de bairros consolidados marcados por possuírem uma infra-estrutura urbana rica e já bem estabelecida, serviços e equipamentos públicos, muitas oportunidades de trabalho e grande potencial habitacional já que é geralmente uma região densamente edificada. Soma-se a isso o seu importante caráter cultural por ser o local onde a cidade começou e, portanto onde se concentra a grande maioria do seu patrimônio histórico edificado.

Apesar de todas essas características é muito comum nas grandes cidades um movimento de abandono dessa área devido à formação de novos centros na cidade que atraem o interesse tanto dos investimentos quanto da própria população. E isso se aplica à cidade de São Paulo. De acordo com o que será exposto mais adiante nessa pesquisa, a partir da década de 1950 tem início o declínio da região central da cidade de São Paulo que só se intensificou nos anos seguintes até que, no final da década de 80 e principalmente no início dos anos 90, as idéias sobre o centro da cidade começaram a se modificar o que deu início à elaboração de planos para a reabilitação dessa área.

A partir dos anos 90, muito foi desenvolvido para melhorar o centro de São Paulo, unindo esforços municipais, estaduais, federais e da população da cidade. O retorno da preocupação com o centro da cidade pode ser conferido em um trecho da Declaração de São Paulo, escrita em 1989 na capital paulista, que diz o seguinte:
“Que populações marginalizadas, ocupantes dos centros históricos urbanos de todas as nações, devem poder alcançar melhoria real na qualidade de vida de seu cotidiano, através de projetos de restauração e reciclagem que considerem, também, sistemas habitacionais de padrão condizente com a dignidade e cidadania das populações.” (1989, p.2)

É muito importante reabilitar o centro das cidades e atrair os interesses de volta a essa região. Os centros urbanos históricos são essenciais para marcar a identidade da cidade frente aos visitantes e representam uma importante referência para os seus cidadãos, pois eles são o testemunho da cultura e do passado da cidade, onde se concentra grande parte do seu patrimônio histórico e arquitetônico. O trecho a seguir, retirado das Normas de Quito (1967, p.6) demonstra essa significativa relação entre a população e o seu centro histórico: “Um monumento restaurado adequadamente, um conjunto urbano valorizado, constituem não só uma lição viva de história como uma legítima razão de dignidade nacional.”

Ainda quanto ao caráter cultural desses centros existe a importante questão do turismo que foi muito discutida em algumas cartas patrimoniais como nas Normas de Quito (1967) e no Compromisso de Salvador (1971), tendo inclusive a elaboração de um documento que discorre especificamente sobre esse assunto, a Carta do Turismo Cultural (Bruxelas, 1976). De todos esses escritos percebe-se o grande interesse em fazer com que esse patrimônio histórico-arquitetônico participe do desenvolvimento econômico dos países e é aí que entra a ação do setor turístico o qual deve localizar os pontos fortes e aproveitar o potencial dessas localidades. A idéia é que o turismo cultural “justifica, de fato, os esforços que tal manutenção e proteção exigem da comunidade humana, devido aos benefícios sócio-culturais e econômicos que comporta para toda a população implicada.” (Carta do Turismo Cultural, 1976, p.2)

As sentenças a seguir, retiradas do Compromisso de Salvador, expressam a participação esperada dos agentes turísticos nesses centros históricos:
“Recomenda-se a convocação dos órgãos responsáveis pelo planejamento do turismo, no sentido de que voltem suas atenções para os problemas, utilização e divulgação dos bens naturais e de valor cultural especialmente protegidos por lei. (...) Recomenda-se que os órgãos responsáveis pela política de turismo estudem medidas que facilitem a implantação de pousadas, com utilização preferencial de imóveis tombados” (1971, p.2)

Naturalmente, esses documentos também discorrem sobre a relação entre as atividades turísticas e o respeito ao patrimônio histórico. Projetar e utilizar um ambiente composto por diversos bens patrimoniais exige um cuidado não só com o próprio edifício como também com o seu entorno, pois todo o contexto onde estão inseridas tais edificações também faz parte da história da cidade. A Cartilha do IPTU encontrada no site da Prefeitura de São Paulo mostra a importância desse cuidado: “Esta área (espaço envoltório de um bem tombado) é delimitada com o objetivo de proteger sua visibilidade, harmonia e ambiência.”

Além disso, é interpretado nas cartas patrimoniais que a existência de monumentos bem cuidados e utilizados plenamente, além de atrair visitantes, atrai também a população da própria cidade, criando um efeito de revitalização do seu entorno próximo, como pode ser conferido no parágrafo das Normas de Quito (1967, p.6): “a valorização de um monumento exerce uma benéfica ação reflexa sobre o perímetro urbano em que se encontra implantado e ainda transborda dessa área imediata, estendendo seus efeitos a zonas mais distantes.”

Outro ponto discutido nessas cartas é quanto à convivência entre as atividades turísticas e a vida cotidiana desses centros. O caso de reabilitação do Centro Histórico de Salvador, analisado nessa pesquisa, ilustra uma intervenção que não se preocupou em adotar essas medidas reguladoras o que resultou numa descaracterização do que realmente era o centro dessa cidade. Foi dada uma importância exacerbada para o uso turístico do local que acabou passando por cima de tudo o que realmente acontecia naquele lugar criando um cenário habitado apenas pelos visitantes e praticamente inutilizado pelos próprios soteropolitanos.

“É evidente que, na medida em que um monumento atrai a atenção do visitante, aumentará a demanda de comerciantes interessados em instalar estabelecimentos apropriados a sua sombra protetora. Essa é outra conseqüência previsível da valorização e implica a prévia adoção de medidas reguladoras que, ao mesmo tempo em que facilitem a estimulem a iniciativa privada, impeçam a desnaturalização do lugar e a perda das finalidades primordiais que se perseguem.“ (Normas de Quito, 1967, p.6)

O caso do Pelourinho, mesmo tendo suas intervenções iniciadas com o cuidadoso projeto da arquiteta Lina Bo Bardi, culminou numa área voltada quase que exclusivamente ao turismo. Isso mostra a fragilidade desse tipo de projeto e justifica a preocupação existente nas cartas patrimoniais de que as atividades turísticas são positivas à economia e à cultura mundial, mas que devem respeitar as características, a história e o cotidiano de cada local. “É possível equipar um país sem desfigurá-lo; preparar e servir ao futuro sem destruir o passado. A elevação do nível de vida não deve se limitar à realização de um bem material progressivo; deve ser associado à criação de um quadro de vida digno do homem.” (Informe Weiss, Normas de Quito, 1967, p.3).

Além do seu caráter cultural, os centros urbanos são muito importantes, pois geralmente eles possuem uma grande variedade de atividades e usos convivendo harmonicamente que geram uma dinâmica bastante rica que garante o seu uso e consequentemente a sua preservação. Graças à grande variedade de usos do centro das cidades eles se tornaram regiões de grande oferta de empregos. Essa concentração de grande parte dos postos de trabalho atrai diariamente milhares de pessoas e por isso, o retorno do uso residencial para o centro, além de dinamizar a vida da região, diminuiria os movimentos pendulares moradia-trabalho trazendo melhor qualidade de vida para os cidadãos e também melhorias no trânsito de toda a cidade.

Essa importante qualidade dos centros urbanos foi discutida no 1° Seminário Brasileiro para Preservação e Revitalização de Centros Históricos, realizado em 1987, evento onde foi escrita a Carta de Petrópolis, como se observa no trecho a seguir:
“Sendo a polifuncionalidade uma característica do SHU (Sítio Histórico Urbano), a sua preservação não deve dar-se à custa de exclusividade de usos, nem mesmo daqueles ditos culturais, devendo, necessariamente, abrigar os universos de trabalho e do cotidiano, onde se manifestam as verdadeiras expressões de uma sociedade heterogênea e plural. Guardando essa heterogeneidade, deve a moradia construir-se na função primordial do espaço edificado, haja vista a flagrante carência habitacional brasileira. Desta forma, especial atenção deve ser dada à permanência no SHU das populações residentes e das atividades tradicionais, desde que compatíveis com a sua ambiência.” (1987, p.1)

Associada a sua funcionalidade variada, está a bem consolidada infra-estrutura urbana existente nesses centros formada por um sistema viário estruturado, saneamento básico, energia e serviços de telefonia, redes de transporte coletivo e diversos equipamentos sociais e culturais cujo aproveitamento resultaria em melhorias tanto ambientais quanto econômicas para a cidade.

É importante destacar que a participação da população é imprescindível para o desenvolvimento desses projetos urbanos. O vínculo entre cidadãos e cidade, além de resultar em respeito e orgulho, culmina em intervenções bem sucedidas que desenvolvem o potencial da região, pois ninguém melhor do que os próprios moradores e usuários para saber quais são as reais vocações de cada lugar. A influência da sociedade nesses projetos é muito bem exemplificada com o caso da Lapa no Rio de Janeiro. Os processos de tombamentos, as reformas de algumas edificações isoladas e a elaboração de projetos da iniciativa pública como o Corredor Cultural e a Quadra Cultural da Lapa atraíram os olhares para essa região e, apesar das complicações de implantação desses projetos, a sua simples existência aumentou a auto-estima dos moradores e usuários criando uma dinâmica efervescente no local que resultou em algumas mudanças significativas na região.

O fenômeno que aconteceu nesse local já foi observado nas Normas de Quito no seguinte trecho:
“Nada pode contribuir melhor para a tomada de consciência desejada do que a contemplação do próprio exemplo. Uma vez que se apreciam o resultado de certas obras de restauração e de revitalização de edifícios, praças e lugares, costuma ocorrer uma reação favorável de cidadania que paralisa a ação destrutiva e permite a consecução de objetivos mais ambiciosos.” (1967, p.9)

Pode-se dizer que o que ocorreu na Lapa carioca foi uma revitalização espontânea, a partir de algumas pequenas reformas e tombamentos, que estimulou a realização de projetos maiores; as ações da iniciativa privada e de grupos populares acabaram por instigar o poder público a realizar obras de reurbanização. A partir dessas intervenções, consolidou-se na Lapa uma vida, diurna e noturna, muito saudável que atrai visitantes do mundo todo que estão em busca de uma rica experiência cultural.

A partir dessa análise, entende-se a importância econômica, habitacional e cultural de se intensificar o uso das regiões centrais das cidades. A elaboração de uma intervenção urbana em centros históricos é bastante complexa e deve ser elaborada a partir da presença dos edifícios de valor patrimonial e da infra-estrutura urbana já bem consolidada da região. Além disso, a participação da sociedade que mora e que usa esses centros é imprescindível em todas as fases do projeto, desde a sua elaboração até a sua incorporação na vida da cidade.

“A valorização de um monumento exerce uma benéfica ação reflexa sobre o perímetro urbano em que se encontra implantado e ainda transborda dessa área imediata, estendendo seus efeitos a zonas mais distantes.” (1967, p.6) A partir desse trecho retirado das Normas de Quito e de tudo o que foi estudado, especialmente o caso da reabilitação urbana no Rio de Janeiro, minha escolha foi baseada na intenção de aproveitar e encorajar a vocação do local como um território cultural desses grandes equipamentos urbanos. É evidente que não houve um processo de reabilitação do tecido urbano no entorno desses equipamentos culturais em São Paulo e que hoje eles se encontram ilhados numa das partes mais degradadas da cidade. Dessa forma, o propósito do meu projeto é estimular essa esperada valorização do perímetro urbano desses monumentos arquitetônicos com a implantação de atividades ligadas ao funcionamento dos equipamentos culturais ali presentes.

Como um dos objetivos mais importantes do meu trabalho é desenvolver um projeto de intervenção urbana que lide com a existência de bens patrimoniais, a presença de muitos imóveis tombados em diferentes estados de conservação e de utilização foi fundamental para a escolha desse local.

O cruzamento entre as Ruas do Triunfo e General Osório exibe uma primeira tentativa de difusão do território cultural da Sala São Paulo: a Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim (EMESP). A escola está instalada em um edifício construído em 1927, tombado pelo patrimônio histórico. A sua presença cria uma atmosfera muito agradável nesse cruzamento, como foi exposto em um dos relatos das visitas feitas ao centro da cidade, mas essa influência se limita exclusivamente às esquinas do cruzamento. No caso da Rua do Triunfo é sensível a mudança no movimento das calçadas ao avançar em direção à Rua dos Gusmões. Nesse primeiro quarteirão da Rua do Triunfo existem 5 imóveis tombados e apenas 2 deles apresentam atividades comerciais (bares/lanchonetes) no térreo. Os outros, apesar de estarem em bom estado de conservação, estão com as suas portas do térreo fechadas e com uso residencial nos outros andares; o imóvel de número 229A aparente ter sido restaurado recentemente, mas está completamente vazio e fechado.

Já no caso da Rua General Osório, encontra-se outra situação exemplo da influência da Sala São Paulo e da Escola de Música; a maioria do comércio ali existente é de venda de instrumentos musicais e espaços para aulas particulares de música. Mas por serem apenas lojas, esses estabelecimentos funcionam dentro do horário comercial e todos fecham no fim da tarde, transformando um local movimentado e cheio de música num local deserto e propício para a realização de atividades ilícitas.

A partir dessa primeira análise do local de intervenção é possível definir que o meu projeto se baseará no binômio habitação e território cultural. Habitação porque essa área tem potencial para esse tipo de uso o qual é muito saudável para a vida urbana já que ele traz consigo diversas atividades comerciais locais importantes para a formação de uma vida cotidiana e também para a dinâmica das calçadas. Essa movimentação associada aos edifícios residenciais resulta numa vigilância involuntária dos moradores e proporciona segurança para os transeuntes. Com isso esse espaço da cidade seria devolvido aos cidadãos de São Paulo, sendo essa uma das principais pretensões da minha intervenção.

Meu projeto se baseará na idéia de território cultural, pois essa é uma das vocações dessa região e é algo necessário para a cidade. Além disso, a exploração desse caráter cultural seria uma forma de manter um movimento saudável durante a noite o que impediria o acontecimento de determinadas atividades ilícitas e proporcionaria a segurança noturna da região o que seria um grande estímulo para a sua utilização.

Atualmente existem duas formas de relacionamento entre a população e essa parte da cidade as quais se organizam em diferentes períodos do dia. Durante a manhã e a tarde, grande parte das calçadas da região é tomada pela saudável e positiva movimentação das já citadas atividades comerciais especializadas de eletrônicos, informática e peças para automóveis.

Já no período noturno, a partir do momento em que todo esse comércio se fecha as ruas do entorno da estação da Luz são tomadas por outros tipos de atividades comerciais: o tráfico e o consumo de drogas, especialmente do crack, e também a prostituição. A maneira como a cidade passa a funcionar durante a noite e a madrugada pode ser comparada com a situação de um gueto. Um trecho do texto “O que é gueto? Construindo um conceito sociológico” do sociólogo Loïc Wacquant, presente na Revista de Sociologia e Política nº 23 de novembro 2004, ao explicar o relacionamento de um gueto com a cidade a sua volta, parece explicar o que acontece na região da Nova Luz durante o período noturno:
“Para a categoria dominante, sua função é ‘circunscrever e controlar’, o que se traduz no que Max Weber chamou de “cercamento excludente” da categoria dominada. Para esta última, no entanto, trata-se de um ‘recurso integrador e protetor’ na medida em que livra seus membros de um contato constante com os dominantes e permite colaboração e formação de uma comunidade dentro da esfera restrita de relações criada.” (WACQUANT, p. 159)

A inserção de mais habitações e de usos comerciais com um período dilatado como restaurantes e bares, que dinamizam a vida noturna do local, dá motivos para que essa parte da cidade também seja utilizada durante a noite trazendo diferentes públicos, atraindo novos usuários e novos habitantes, o que gera uma dinâmica mais variada e saudável que desencoraja a realização das atividades ilícitas e quebra as barreiras desse gueto.

A possibilidade de melhorar o relacionamento entre a população e a cidade de São Paulo, associada ao forte potencial da área graças a sua representatividade histórica, cultural e econômica foram os fatores que nortearam a escolha da região adjacente à Estação da Luz para ser o tema central desse trabalho. Sua intenção é evidenciar a importância dessa área e a forte presença de edifícios históricos tão importantes para a história do crescimento da cidade de São Paulo, mostrando que essa é uma parte da cidade que vale a pena ser observada e tratada com muita atenção e respeito.

Foi aprovada em 8 de dezembro de 2005 a lei N° 14.096 que criou o “Programa de Incentivos Seletivos para a região adjacente à Estação da Luz”, inaugurando a retomada do interesse pela região. E então foi a partir desse momento que o interesse em melhorar a região passou a ser o principal foco de discussões quanto ao entorno da Estação da Luz. A reabilitação física dos espaços urbanos, dos edifícios históricos e dos usuários de drogas da região começou a ser analisada conjuntamente e essa idéia de uma vida nova para toda a dinâmica desse trecho da cidade se resume no seu novo nome: a Nova Luz.

Em maio desse ano foi selecionado o Consórcio Nova Luz que se responsabilizará pela reabilitação urbana das quadras circundadas pela Avenida São João, Avenida Duque de Caxias, Rua Mauá, Avenida Cásper Libero e Avenida Ipiranga. Essa equipe é composta pela Cia City, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), pela construtora Concremat e pela empresa norte-americana Aecom.

A retomada de interesse pela região da Estação da Luz também foi um fator importante para a minha escolha de trabalhar com o local. A partir disso, foram realizadas no início desse trabalho muitas visitas dentro do perímetro da Nova Luz em busca de um trecho de cidade que reunisse as principais características dessa região para que então pudesse ser desenvolvida uma proposta mais detalhada que serviria como base para uma intervenção em todo o perímetro.

Foi selecionada a área próxima à Escola de Música do Estado de São Paulo – Tom Jobim (EMESP) localizada na esquina da Rua General Osório com a Rua do Triunfo, ao lado do Largo General Osório. É um local bastante representativo por estar próximo à equipamentos culturais como a própria EMESP, a Estação Pinacoteca e a Estação Julio Prestes, pela grande quantidade de patrimônios tombados e pela movimentada atividade comercial associada, principalmente, à Rua Santa Ifigênia.

Sendo essa região de grande importância para o desenvolvimento da cidade de São Paulo a manutenção dos edifícios históricos existentes (não só aqueles tombados, mas também os testemunhos de diversas fases da urbanização da cidade) é imprescindível e essa condição foi um dos fatores que mais motivou a minha escolha por essa região, já que o objetivo do meu trabalho é estudar a relação entre intervenções urbanas e a presença de patrimônios históricos. Portanto, no meu projeto, assim como no Consórcio Nova Luz, está incluída a preservação e a restauração dos edifícios históricos e a implantação dos novos edifícios foi pensada de forma a reconhecer e valorizar a permanência do patrimônio arquitetônico.

Dessa forma, para dar início ao desenvolvimento de um projeto fundamentado na presença de edificação de valor patrimonial fez-se necessário um levantamento dos edifícios existentes no local para avaliar a sua importância histórica e arquitetônica, os seus usos e as suas condições físicas, procurando eleger aqueles que deveriam permanecer.

Os critérios utilizados para a seleção dos edifícios permanecentes foram:
1. edifícios tombados;
2. edifícios que, apesar de não serem tombados, possuem elementos arquitetônicos e/ou paisagísticos singulares de alguma época da urbanização da cidade;
3. edifícios que possuem a partir de 4 pavimentos, por não valer a pena demolir grandes estruturas que já contribuem com o aumento da densidade do local.
4. edifícios que possuem um número significativo de unidades residenciais. (Critério na maioria das vezes coincidente com o critério n° 3.)
Os estados de conservação dos imóveis também foram avaliados, mas esse critério não foi utilizado como justificativa final sendo levado em consideração apenas como reforço de algum dos outros quatro critérios.

No total foram mantidos 44 imóveis sendo 14 patrimônios históricos tombados, 14 imóveis que possuem elementos arquitetônicos e/ou paisagísticos singulares e 15 imóveis que possuem 4 ou mais pavimentos, dos quais 8 representam um número significativo de unidades residenciais. A partir dessa escolha, abriram-se espaços nas quadras onde foram propostas novas ocupações e usos sempre visando valorizar e evidenciar o patrimônio que ali permaneceu, além de estimular a população a utilizar e permanecer por mais tempo nesses locais.

A principal intenção desse trabalho foi estudar a importância do patrimônio edificado dentro do planejamento urbano. Assim, parti para o estudo de casos de intervenções urbanas que se fundamentaram na presença e revitalização desse patrimônio. Pesquisei projetos em diferentes partes do mundo e percebi que, além do respeito patrimonial, todos eles se preocuparam em manter a dinâmica cotidiana da região e contaram com a participação da comunidade local para o seu desenvolvimento. Essa colaboração “interna” da população resultou em propostas mais condizentes com a área que, consequentemente, foram mais bem aceitas pelos usuários do local e melhor incorporadas na dinâmica da cidade. Além disso, como a população se sentiu parte do projeto, o seu relacionamento com a cidade melhorou muito. A manutenção e a reinserção na vida urbana de edifícios de valor patrimonial também foi importante para a criação dessa conexão entre cidade e cidadãos já que eles contam a história do desenvolvimento da cidade o que estimula o orgulho e o respeito da população.

Com a idéia de melhorar o relacionamento entre a população e a cidade de São Paulo, estudei a sua região central, onde está concentrado o passado da cidade. Realizei inúmeras visitas em busca de um trecho urbano que contasse com a presença de edifícios significativos para a história do desenvolvimento da cidade, carentes por uma intervenção urbana. As minhas experiências no centro da cidade estão descritas no anexo no final deste trabalho.

A região do entorno da Nova Luz não fazia parte dos meus roteiros iniciais. Muito pelo contrário, evitei essa área o máximo que pude, pois, assim como grande parte da população da cidade de São Paulo, eu tinha muito preconceito com essa região e não acreditava que ali existisse qualquer potencial de recuperação. Apesar disso, em uma visita à Avenida Cásper Líbero, no quarteirão próximo à Estação da Luz acabei mudando de idéia. Ali tive contato com alguns moradores e usuários do local e descobri uma dinâmica cotidiana muito saudável, semelhante a uma pequena cidade do interior. Todas as pessoas que pude conversar estavam bastante satisfeitas e não tinham a menor intenção de se mudar dali. A região é segura e eu me senti confortável em passear por ali mesmo durante a noite.

Essa dinâmica positiva já dentro do perímetro do Projeto Nova Luz me encorajou a conhecer melhor as suas outras ruas. De fato, a situação das ruas mais internas do perímetro é bastante diferente do que acontece na Avenida Cásper Líbero. A falta de edifícios residenciais, o predomínio de atividades comerciais e uma quantidade expressiva de estabelecimentos vazios e/ou fechados cria uma condição menos convidativa. Mas a quantidade de edifícios históricos muito bonitos e também muito degradados gera uma vontade muito grande de cuidar daquele local. A presença desses edifícios mostra como essa área foi importante para a cidade e evidencia o seu potencial.

A partir desse momento passei a me dedicar para conhecer ao máximo essa área. Realizei diversas visitas ao local, em diferentes horários e tive a oportunidade de conhecer diversas pessoas no local. Aos poucos o meu trabalho foi adquirindo um caráter de documentário do cotidiano da região e a cada dia um novo patrimônio histórico era descoberto. Quanto mais eu conhecia, mais eu admirava a região o que contribuiu muito com o desenvolvimento da minha proposta.

Fazer esse projeto deixou de ter apenas o propósito de exercício e passou a ter essa forte intenção de evidenciar o potencial e a beleza dessa região. Dessa forma, realizei levantamentos fotográficos de todos os imóveis presentes nas quatro quadras da minha proposta e desenvolvi a minha intervenção baseada na idéia de evidenciar e valorizar o patrimônio edificado existente.

Com o desenvolvimento desse trabalho pude perceber que, para projetar uma intervenção urbana fundamentada na presença e na manutenção do patrimônio histórico edificado é necessário um reconhecimento profundo do local de projeto. É muito importante para o desenvolvimento metodológico desse tipo de intervenção, conhecer todos os edifícios, não só os que possuem alguma importância patrimonial, e saber quais são os seus papéis dentro daquela dinâmica urbana, pois a partir disso têm-se quais são os principais usos da região e qual o seu significado e importância para o restante da cidade.

Saber sobre o cotidiano da área de projeto também é imprescindível, pois nesse tipo de projeto urbano, assim como existe a preocupação com a manutenção dos edifícios de valor histórico, existe também o interesse de manter a dinâmica da vida cotidiana pré-existente. Para compreender de fato o que acontece no local é preciso vivenciá-lo. Realizei diversas visitas nas quatro quadras escolhidas para o meu projeto em busca de me familiarizar com o local; fiz questão de conversar com o máximo de pessoas possível, para saber do que elas mais gostavam e mais detestavam na região, quais foram as suas experiências mais marcantes, quais são as suas expectativas para o local e qualquer outra questão que a pessoa julgasse necessário me contar. Esse tipo de informação é sempre muito rico, pois é proveniente de quem mais conhece a área. Além disso, são para essas pessoas que o projeto será desenvolvido então nada mais correto do que saber a opinião desse público.

O respeito com a história da cidade e a participação da comunidade usuária da região torna esse tipo de intervenção mais eficiente, pois isso permite que o projeto seja melhor absorvido pela população e pela cidade uma vez que ele representa uma melhoria e não uma mudança drástica de um trecho da cidade.

Acredito que com esse trabalho atingi o objetivo de demonstrar o valor da região do entorno da Estação da Luz e que ele será um importante documento para melhorar a sua imagem frente à população o que é imprescindível para criar uma identificação mais forte e saudável entre a cidade de São Paulo e os seus cidadãos.

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