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secao 4!

a arquitetura das aldeias guarani-mbyá da cidade de São Paulo

Luciana Romão da Silva

Reginaldo L. Nunes Ronconi

Inserida no campo amplo da cultura popular – ou antes das culturas populares – a arquitetura vernácula remete a um conjunto bastante complexo de tipologias e soluções construtivas. Varia em função não apenas de características geográficas e ambientais – como o clima e a disponibilidade de materiais empregados – mas também em função das particularidades sociais, econômicas e culturais de uma determinada população.

É o caso, por exemplo, da arquitetura de pau-a-pique difundida em diversas comunidades por todo o país – os quilombos no Vale do Ribeira, as aldeias guarani na Serra do Mar, as “gaiolas” no interior do centro-oeste, as comunidades rurais do nordeste – e que mantém, respeitadas as limitações próprias da técnica, especificidades de planta, fachada, estrutura e revestimentos.

No entanto, quando focamos a análise no meio urbano, notamos que a arquitetura popular se introduz inevitavelmente na lógica capitalista de produção do espaço; o objeto arquitetônico – que no meio rural poderia ser visto intrinsecamente como utensílio e, portanto, valor de uso – torna-se nas cidades, ainda que às margens do sistema, valor de troca.

A arquitetura popular ganha assim uma nova significação, quase sempre em conflito com os elementos rurais tradicionais que a conformavam. Nesse processo, perde boa parte de sua especificidade e tende progressivamente a uma homogeneização, decorrente de condicionantes econômicos e sociais.

Exemplos claros nesse sentido nos fornecem diversos estudos sobre habitação popular, publicados a partir da década de 1970¹. As casas populares seguem um modelo de produção a baixíssimo custo: são implantadas geralmente em terrenos irregulares (muitas vezes propriedades estatais em áreas de risco ou de pouca valorização imobiliária) e são levantadas por seus moradores no tempo que lhes sobra aos finais de semana, com quaisquer materiais e equipamentos que tenham à mão – quase sempre, aliás, de segunda-mão.

É dessa maneira precária e periférica que a produção popular se insere na reprodução capitalista do espaço. O trabalhador, levado pelas circustâncias econômicas e muitas vezes inconscientemente, rebaixa o valor relativo de seus meios de sobrevivência e, consequentemente, sua própria força de trabalho. Aumenta com isso a mais-valia e contribui, ainda que de forma indireta e involuntária, para que a lógica de acumulação do capital siga seu curso (FERRO, 2006).

Com isso não queremos dizer que inexiste uma arquitetura de caráter tradicional nas grandes metrópoles; pelo contrário, a intenção é compreender as tradições – e mais especificamente suas formas de manifestação nas construções populares – enquanto inventividades que se renovam de acordo com as condições permitidas, carregando em si uma bagagem de conhecimentos anteriores e refletindo saberes e valores inerentes às culturas populares.

É o caso das lajes, utilizadas como espaço de lazer e estar e, exemplo um pouco mais controverso, dos “puxadinhos”, que são reflexo da imediaticidade e do dinamismo que marcam o fazer popular, ainda que a esse caráter estejam ligadas variantes sócio-econômicas importantes.

O solo urbano, uma das principais mercadorias do capital especulativo, insere-se de maneira central na reprodução do capitalismo financeiro mundial, de modo que as cidades passaram a ser, desde a década de 1960, instrumentos por excelência da expansão da “economia-mundo” ².

As metrópoles em constante crescimento reproduzem uma série de contradições e desigualdades necessárias à manutenção da hegemonia das classes dominantes. Essas desigualdades são visíveis, por um lado, nas gigantescas periferias miseráveis e por outro, no surgimento de novos pólos tecnológicos, centralizadores de infraestruturas, do capital e da “alta cultura”.

As culturas populares, concentrando-se espacialmente em alguns bairros centrais – desvalorizados e abandonados pela elite – e, em grande parte, nas imensas periferias carentes de infraestrutura e de sistemas de acesso, são entendidas aqui como parte de um sistema social, o qual por sua vez é contido na esfera mais ampla do capitalismo internacional. Dessa forma, pressupõem em suas diversas manifestações – sejam elas celebrações, histórias, cantigas, brincadeiras, normas de conduta ou produção material (artesanato, arquitetura) – contradições inerentes ao duplo papel que desempenham de resistência à cultura oficial e de continuidade, uma vez que se inserem inevitavelmente nas relações capitalistas de produção e, portanto, são práticas exercidas dentro de uma esfera de dominação (CHAUÍ, 1986).

A partir desse pressuposto inicial pretendemos apresentar, discutir e compreender alguns elementos de arquitetura popular ainda presentes na metrópole de São Paulo. Tendo em vista que esses elementos são parte constitutiva da tradição e da cultura popular, serão analisados por meio de diversas aproximações: na pequena escala do objeto arquitetônico, na escala um pouco maior de sua localização no espaço urbano e, por fim, na esfera das relações humanas que compreendem e reformulam cotidianamente a ambos, cidade e arquitetura.

A arquitetura e as técnicas construtivas vernáculas formam um conjunto bastante amplo e controverso. Geralmente ligadas ao modo de vida rural, quando inseridas no contexto metropolitano tendem a uma relativa homogeneização, fato já mencionado. Ainda assim, elas estão presentes em uma imensa gama de casos, que devem ser analisados em todas as suas particularidades para serem compreendidos.

Somente na mancha urbana de São Paulo, existem inúmeras favelas e auto-construções que se utilizam de soluções formais advindas de outras partes do país, notadamente dos estados do norte e nordeste, e que precisariam ser analisadas caso a caso para um melhor entendimento das manifestações culturais nelas presentes.

Ainda assim muita cautela é necessária, uma vez que as técnicas construtivas empregadas por essas populações em seus locais de origem passam a ser raramente ou nunca utilizadas no espaço metropolitano. Isso ocorre em função da incompatibilidade de materiais, das mudanças no meio de vida, das dificuldades econômicas, enfim, de um conjunto de fatores que levam a uma perda progressiva do conhecimento técnico tradicional. Os elementos restantes acabam por caracterizar-se como soluções formais algumas vezes mais, outras menos adequadas aos costumes dessas populações.

Quando não são esquecidos ou simplesmente ignorados, esses elementos passam então a mesclar-se com novas técnicas, novos materiais e soluções que se incorporam ao saber popular, conformando formas novas – e sempre mutáveis – de conhecimento. De qualquer forma, um trabalho que busque analisar esses exemplos deve partir de um mapeamento nacional que busque as origens de cada uma dessas particularidades, presentes no conjunto vasto das populações migrantes.

Além das favelas e auto-construções, podemos listar ainda como exemplos de arquitetura popular na metrópole: as habitações ribeirinhas remanescentes no extremo sul, às margens das represas Billings e Guarapiranga, as chácaras e sítios localizadas ao longo de toda borda periférica das zonas norte, leste e sul, as Comunas da Terra – assentamentos bastante interessantes realizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – e ainda as aldeias indígenas guarani-mbyá, grupo que chama atenção por ser praticamente ignorado pela população de São Paulo.

Diante de origens, histórias, problemas e demandas tão distintos, logo no início do processo de pesquisa apresentou-se uma dificuldade prática em se realizar um Trabalho Final de Graduação que analisasse de maneira satisfatória todas as especificidades referentes a cada um desses grupos. Assim, optamos por um recorte mais preciso, que trouxesse em si a problemática das tradições, das culturas populares e de suas relações com a metrópole, porém que se centrasse em um único caso.

Estudar as tribos guarani presentes na cidade se mostrou uma opção bastante instigante por seu caráter de exceção: não se trata de uma exclusão social, nos padrões sofridos pelos demais grupos populares, mas acima de tudo da exclusão de uma comunidade cuja forma de apreensão da natureza, da cidade e da própria habitação diferem em absoluto da nossa, ocidental e eurocêntrica.

Não somente, estudar a arquitetura tradicional guarani-mbyá se mostrou uma opção muito interessante por se tratar de uma comunidade que se reconhece como diferente e tenta (novamente, vale salientar, não sem incoerências internas e não sem grandes dificuldades) manter sua autonomia cultural, o que se reflete de maneira evidente na arquitetura, principalmente aquela de caráter religioso.

Existem dentro da região metropolitana de São Paulo quatro aldeias guarani, às quais ligam-se ainda uma série de outras localizadas ao longo da Serra do Mar. Juntas, formam um único conjunto social e economicamente interdependente. Dessa maneira, quaisquer estudos sobre os guarani devem levar em consideração essa relação ampla entre as terras demarcadas e o território indígena de fato, que extrapola os limites definidos pelo Estado.

Uma vez que nosso interesse, entretanto, é entender as relações existentes entre a arquitetura guarani atual e a metrópole, optamos por um recorte que abarcasse de forma precisa as duas realidades enfrentadas pelos guarani-mbyá na metrópole: a pequena comunidade localizada no Jaraguá, região noroeste da cidade, e a aldeia Tenonde-Porã, a mais populosa de todo o estado, em Parelheiros, extremo sul.

As tekoá do Jaraguá, conhecidas também como aldeia de cima e aldeia de baixo, serão analisadas como um único conjunto, pois apresentam estruturas físicas bastante semelhantes e compreendem uma mesma realidade. Perfazem a menor Terra Indígena presente em território brasileiro, com cerca de 4,7 hectares, sendo mais da metade desse valor ainda não-demarcado. O sistema produtivo guarani, baseado na agricultura, coleta e pesca, é completamente impossibilitado. Obrigados a sobreviver precariamente do artesanato, de políticas estatais e doações feitas por grupos privados, essas duas aldeias mostram uma configuração espacial distinta da apresentada em Parelheiros.

A despeito do Parque Ecológico e da proximidade da Serra da Mantiqueira, o Jaraguá é um bairro de urbanização consolidada. As imediações da aldeia sofrem constantes alterações, fruto da atividade imobiliária intensa ligada tanto ao eixo industrial e logístico da rodovia Anhanguera quanto ao mercado formal e informal de habitação para as classes média e baixa.

Em meio a chácaras, armazéns, empresas de logística, conjuntos habitacionais – e eventualmente a área verde representada pelo parque – as tekoá guarani sofrem não com a aproximação da cidade, mas com sua presença concreta e imediata.

A tekoá Tenonde Porã, por outro lado, perfaz uma Terra Indígena mais ampla, de 26 hectares, às margens da represa Billings.

Muito embora o distrito de Parelheiros tenha se transformado nos últimos 20 anos em um vetor de expansão periférica da metrópole, principalmente com os assentamentos informais ao longo da represa, as aldeias ainda encontram-se relativamente apartadas do modo de vida urbano. Com uma maior possibilidade de sobreviver da agricultura e da coleta – atividades econômicas complementadas pelo turismo e pela venda de artesanato – Tenonde Porã apresenta uma conformação espacial e arquitetônica mais próxima à tradicionalmente empregada entre outros grupos guarani³.

Pretendemos realizar um estudo de caso que introduza, para além da documentação arquitetônica, uma breve discussão sobre o modo de vida, interesses e dificuldades atuais de um grupo étnico bastante ignorado por nossa sociedade.

A arquitetura, entendida aqui como produção material, é uma das facetas por meio das quais uma determinada cultura se perpetua no tempo e no espaço. Ela muda quando mudam também os modos de vida, se ajusta a novas realidades e exprime, no espaço, a visão particular de uma sociedade em uma determinada época, sob determinadas condições políticas, econômicas e sociais. Em se tratando de uma arquitetura de caráter simbólico e religioso forte, isso fica ainda mais evidente.

Obviamente, esgotar a discussão a respeito da arquitetura e de suas relações com a tradição guarani-mbyá demandaria um conhecimento profundo dos códigos culturais específicos ao grupo, os quais raramente são revelados aos “de fora”. Não apenas, uma vez que esses códigos não são estáticos e variam em função do momento presente, o estudo requer um olhar que abarque todas as condicionantes (sociais, políticas, econômicas) que atingem diretamente o espaço-tempo diferenciado das aldeias.

Por esse motivo, sentimos a necessidade de dividir o presente estudo em dois momentos. Primeiramente, introduziremos uma discussão mais ampla sobre cultura e tradição, metrópole e periferia e por fim, arquitetura e técnica construtiva guarani. Complementaremos então, num segundo momento, essa base teórica com o conhecimento adquirido a partir das visitas a campo. Pretendemos por fim identificar na arquitetura guarani contemporânea seus elementos tradicionais e não-tradicionais, relacionando-os com a realidade sócio-cultural das tribos guarani inseridas na periferia de uma das maiores metrópoles mundiais.

De um ponto de vista prático-imediato, poderia alegar-se que o levantamento e a análise das construções indígenas atuais seja de pouca aplicabilidade, uma vez que o conhecimento técnico adquirido nesse processo não será aplicado diretamente em projetos no meio urbano da cidade de São Paulo.

No entanto, o estudo traz em si outras questões de bastante relevância. Ver nessa arquitetura um estímulo à pesquisa de técnicas construtivas econômicas – de fácil realização e menor impacto construtivo – bem como entender as maneiras pelas quais o espaço arquitetônico traduz não apenas a tradição, mas os conflitos que a cercam, são algumas dessas questões.

Partindo desse pressuposto, torna-se possível projetar espaços realmente condizentes com demandas específicas. A observação e o estudo de uma arquitetura que, via de regra, não pertence ao repertório erudito, mas que permite compreender elementos de uma cultura torna-se então, antes de tudo, um exercício de alteridade.

  1. Vale citar o estudo “Habitação popular paulista auto-construída” (1977) realizado por Maria Ruth Sampaio e Carlos Lemos e as discussões apresentadas por Sérgio Ferro em “A produção da casa no Brasil” (1969) e “O canteiro e o desenho” (1976). Embora esses textos tratem diretamente dos problemas enfrentados pela classe operária no contexto político da década de 1970, mostram-se ainda bastante atuais.
  2. FERREIRA, João Sette Whitaker. “Globalização e urbanização subdesenvolvida”. In: Revista SP Perspectiva, Revista da Fundação SEADE, janeiro de 2001, São Paulo, Vol.14, nº4, out/dez 2000.
  3. Além dessas duas comunidades, existe ainda na região metropolitana da cidade – também no distrito de Parelheiros e próxima de Tenonde Porã – outra aldeia guarani, a tekoá Krukutu. Optamos, no entanto, por não apresentar um estudo detalhado dessa aldeia. Faz parte de uma mesma realidade urbana e é bastante semelhante à Tenonde Porã do ponto de vista das tipologias arquitetônicas, de forma que acrescentaria pouco às propostas gerais do presente estudo. Limitamo-nos, portanto, a apresentá-la como parte do conjunto maior de aldeias guarani do estado de São Paulo, cujas relações com as comunidades estudadas será exposta mais adiante.

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