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secao 4!

Uma outra aproximação:

dois casos de autoconstrução nas periferias de São Paulo

Beatriz Falleiros Nunes

Ana Lucia Duarte Lanna

"Quando se propõe uma viagem por dentro da cidade, o que se pretende é ir além dessas alternativas, não para provar alguma tese ou buscar a comprovação de questões preestabelecidas, mas para dispor-se a reconhecer outro horizonte e perceber a palpável e efetiva existência de redes sociais, iniciativas localizadas, arranjos coletivos, sistemas de trocas, projetos em parcerias, pontos de encontro, formas de autopromoção, de representação, de associação - sem os quais a vida social, nas suas múltiplas dimensões, já a muito estaria impossibilitada, no cenário dessa megalópole." (Magnani, 2004, p. 34)

O trabalho é um exercício reflexivo de questionamento do processo projetual que aprendi, do diagnóstico à proposição. Sem invalidá-lo como método, busquei outras formas de olhar para o objeto do arquiteto: o espaço. Trata-se de uma aproximação do problema que não a quantitativa, técnica, em algum sentido distante e superior.

Minha inquietação referente ao ato de projetar se deu por um incômodo em relação a esse distanciamento que há entre o detentor da técnica - o arquiteto - e seu objeto. Projeta-se com base em mapas e plantas, em vista superior. Me interessa um entendimento sensorial do problema, uma relação fisicamente próxima da área que se pretende projetar. Me interessa o exercício de um olhar de dentro para fora, uma inserção no problema. E não só isso, mas também conhecer de forma mais humana e menos técnica as pessoas que vivem nesses lugares. Para além de suas insatisfações com a falta de infraestrutura, a ausência do Estado, quero entender de quem estou tratando, quais são os valores dessas pessoas, sua cultura, seu olhar para a cidade.

Diferente dos trabalhos das assessorias técnicas, a exemplo Usina e Peabiru, que propõem diferentes formas de projeto participativo, escolhi me aproximar dos estudos de caso não como clientes ou na posição de arquiteta, mas sim me distanciando um pouco dessa imagem de detentor de uma técnica.

Com o interesse nesse outro tipo de aproximação do objeto de estudo ou do problema de projeto, fui em busca de um conjunto de referências bibliográficas que pudessem orientar essas inquietações distinto daquele que tive contato em minha formação. E foi o contato com a antropologia que me deu referencias para iniciar essa aproximação.

Escolhi dois estudos de caso nas periferias de São Paulo: são mulheres que vivem com suas famílias em casas autoconstruídas em loteamentos irregulares. De acordo com a SEMPLA, cerca de 3,4 milhões de habitantes, vivem em assentamentos precários no município de São Paulo, dos quais 1,6 milhão em moradias precárias localizadas em loteamentos irregulares2. E foi por isso que voltei meu olhar para a autoconstrução, por enxergar que é assim que a cidade se reproduz e se expande nas periferias.

Fiz uma série de visitas à essas mulheres, Cláudia e Jacira. As acompanhei no trajeto para a casa de transporte público e dormi em uma ocasião na casa de uma delas. Nesses encontros fiz diversos registros através de escrita, vídeo, fotografias e desenhos.

E esses encontros resultaram em um conjunto de apreensões diferentes do que poderia trazer uma aproximação com caráter de levantamento técnico. Para além das constatações próprias dos arquitetos, por exemplo a infra-estrutura e construções precárias, consegui perceber uma série de elementos que influem nos processos construtivos, mas que dizem respeito à vida e história dessas mulheres.

No trabalho, evidenciei alguns desses aspectos que me chamaram a atenção. O primeiro deles é a constatação de que nos dois casos tratados fica claro a falta de um projeto fechado que têm para suas obras. O estado de permanente construção é para essas mulheres sinônimo de liberdade. Com a casa fazem o que querem, mudam-na a qualquer momento. Portanto, não se trata exatamente uma falta de projeto, mas um projeto que existe de forma volátil em suas cabeças. E projetos esses que não estão necessariamente ligados às necessidades de sobrevivência, mas sim a seus desejos.

A família é para essas mulheres o elemento de conformação de sua rede de relações com a cidade. Nos casos estudados é nítido seu papel ao longo dos percursos de vida dessas pessoas, é através da dela que se trilha os caminhos do morar. Mais importante é a separação de qualquer vínculo desse tipo de relação familiar com uma cultura burguesa, a família tem a import‰ncia que tem para as classes populares, desvinculada da ideia da reprodução das relações burguesas. A ideia de que o pobre reproduz os valores e a cultura dos ricos não faz sentido aqui.

Outro aspecto que tratei é a questão do uso dos espaços, tanto no que se refere ao espaço interno da casa, quanto à rua. O que percebi ao entrar nessas casas foi justamente uma quebra de organização do espaço em relação ao modelo da classe média. A cozinha é lugar das crianças brincarem, dos adultos conversarem, além de espaço para alimentação. São cômodos bastante híbridos, que mudam de função, ou que não tem função bem definida, com diversos usos. Além dessa questão da organização dos espaços internos das casas, me chamou a atenção a forma com que elas colocam-na em relação com a rua. A rua faz parte delas, como se fosse sua continuação. Em ambos os casos esse uso é nítido e acontece também em função das redes sociais, familiares ou não. As portas das casas permanecem destrancadas, um convite à permanente troca com o ambiente externo.

Trato também da questão da ausência do Estado, que de tão ausente não é sequer entendido como passível de reivindicação. Em seus trajetos de vida, as lutas e conquistas de Jacira e Cláudia acontecem sempre em busca dos desejos que estão ao alcance de suas mãos. Os desejos que passam pela conquista de seus direitos através do Estado parecem estar em outro patamar de busca.

O último ítem que abordo é o quanto essas mulheres colocam a cidade em relação com seu bairro, seu lugar. Percebo que, apesar das dificuldades, da falta de atenção do Estado e das condições sociais, são pessoas que têm uma vivência muito rica da cidade. São integrantes dela assim como os que vivem na cidade formal.

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