logofau
logocatfg
secao 4!

AUTONOMIA E HISTÓRIA

UMA LEITURA DE OPPOSITIONS

Bruno Schiavo

José Tavares Correia de Lira

O poema Interessere, de Décio Pignatari, de 1976:

Na vida interessa o que não é vida
Na morte interessa o que não é morte
Na arte interessa o que não é arte
Na ciência interessa o que não é ciência
Na prosa interessa o que não é prosa
Na poesia interessa o que não é poesia
Na pedra interessa o que não é pedra
No corpo interessa o que não é corpo
Na alma interessa o que não é alma
Na história interessa o que não é história
Na natureza interessa o que não é natureza
No sexo interessa o que não é sexo
(: o amor que de resto, pode ser abominável)
No homem interessa o que não é homem
Na mulher interessa o que não é mulher
No animal interessa o que não é animal
Na arquitetura interessa o que não é arquitetura
Na flor interessa o que não é flor
Em Joyce interessa o que não é Joyce
No concretismo interessa o que não é concretismo
No paradigma interessa o que não é paradigma
No sintagma interessa o que não é sintagma
Na política interessa o que não é política
Em tudo interessa o que não é tudo
No signo interessa o que não é signo
Em nada interessa o que não é nada
Interessere.

Como pode ser que essa seqüência repetitiva de sentenças negativas referindo-se a inúmeras coisas evoque, simultaneamente, algo como a libertação delas para a aceitação de tudo a elas exterior? Ou então, que no interior delas more a relevância ou a pertinência do exterior? Na horizontal, no simples jogo de posicionamento da sentença “o que não é”, colocada após o verbo interessar, ambos entre uma mesma palavra enunciada e reiterada, parece haver uma inversão da lógica predominante do senso-comum. Na vertical, o tom de inclusão e de entrelaçamento de opostos incita à imaginação de possíveis conexões entre dicotomias aparentemente indissolúveis. Sugere também, em seu “sequenciamento”, que mesmo as relações dicotômicas não sejam o suficiente para estruturar qualquer coisa que esteja querendo dizer. O poema, surpreendentemente “conteudista” em relação ao todo da obra do poeta, não deixa de formar um diagrama: COISA - NÃO COISA - COISA. (Ou: RES - NÃO - SER). Mas é um conteudismo apenas formal: serve para esvaziar um número de coisas - “as coisas”, uma generalidade. O vazio é relacionado aos limites; o limite em relação ao “dentro” é aproximado do limite em relação ao “fora”; e daí, vem a espessura da coisa. Há tendência a um universalismo e, entretanto, somente algumas coisas figuram; no meio delas, a arquitetura.

Eco generalizado do “só me interessa o que não é meu” de Oswald de Andrade, também contra “o impermeável entre o mundo exterior e o interior”, trazemos o poema como uma entrada para reflexões sobre a arquitetura que querem pegá-la em sua relação com outros objetos. Supõe-se que o objeto arquitetura não só permite tais abordagens, como também não sobrevive sem elas. Apesar disso, não são incomuns as interpretações que desconsideram que a arquitetura compartilha e influi sobre o conjunto de práticas na sociedade. Tal atitude tem, como figura complementar, o arquiteto que se fecha na profissão e perde uma qualidade necessária e valiosa: a vocação para confluir contextos diversos da cultura e do conhecimento.

Por outro lado, se é hoje tão complexo o tecido entre a arquitetura e o mundo - marca mesma da modernidade cujas esferas de valor se autonomizam progressivamente (Max Weber) -, nota-se uma diversidade de relações arbitrárias, superficiais, que talvez correspondam ao mesmo desejo enunciado acima, mas que são capazes de refletir apenas a sujeição da arquitetura aos interesses mais imediatos. No cenário em que a especialização profissional e a perda de especificidade disciplinar parecem ser dois lados da mesma moeda, a arquitetura troca a abrangência de suas faculdades pelo sucumbir eficiente a toda e qualquer oferta.

Deve ser possível partir de uma instância teórica que vá de encontro a tais problemas simultaneamente; que considere os processos da disciplina em relação ao seu tempo histórico; que demarque oportunamente entre os momentos em que a arquitetura é capaz de firmar uma crítica a partir de seus termos próprios e aqueles em que ela começa a girar em falso em torno de seus procedimentos; que diferencie as apropriações de outros códigos pela arquitetura entre frutíferas e supérfluas, ou ao menos entre semi-frutíferas, semi-supérfluas e supérfluas-frutíferas.

Seria a preocupação com a autonomia da arquitetura uma mera fantasia?

Em 2008, Peter Eisenman diferenciou entre uma autonomia estética - “formalismo mais virulento (...) determinismo tecnológico de neovanguarda” - e uma autonomia disciplinar, “mais complexa”. Há formas que, “geradas internamente, partes de um sistema crítico, podem em um sentido serem consideradas como autônomas, independentes das forças do mercado e, ao mesmo tempo, oferecerem uma crítica dessas forças”. Há porém um outro sentido de autonomia que vem tanto da “falta de compromisso ideológico” quanto de “significados determinados internamente”. A sua descrição parece interessante do nosso ponto de vista pois também compreende duas autonomias, novamente: a que resguarda à arquitetura o desempenho de uma função crítica na sociedade; e a outra, que percebe que muitas de suas elaborações apenas confirmam a ela um papel inócuo, facilmente cooptável. A sua posição fica curiosa se imaginarmos que as próprias palavras que ele usa para acusar poderiam muito bem voltarem contra ele mesmo, que fizera da “falta de compromisso ideológico” a sua bandeira de autonomia por anos. Porém, há um dado importante que permite associá-lo então, para além do seu próprio “formalismo virulento”, também à preocupação com a autonomia disciplinar: em 1967, ele fundava o IAUS, o Institute for Architecture and Urban Studies, em Nova York, e criava assim, ao lado de outros arquitetos e intelectuais, um pólo internacional de debate avançado sobre arquitetura, esforçado em processar e engendrar a transição das questões de relevância para a disciplina dos anos 1960 para os 1980.

Tendo em vista os abalos sobre a autonomia do projeto, desenhados desde a década de 1950, e intensificados ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980, o objetivo deste trabalho é traçar algumas linhas para o entendimento de como um número de esforços teóricos buscaram responder a tais contingências e transformações. “Ou, colocando de outra forma, não seria o reconhecimento teórico de um fato o sintoma de sua perda?”

Assim, o intuito é apreender os embates em questão, os desvios, as propostas e as inversões correspondentes à noção de autonomia da arquitetura durante o período, a partir de seus diferentes protagonistas. O objeto escolhido para tanto é o periódico Oppositions, editado no IAUS, de 1973 a 1984. Sua leitura é reveladora das nuances de continuidade e ruptura no contexto de balanço teórico da arquitetura. A publicação pretendia trazer à tona investigações oportunas quanto à especificidade do objeto arquitetônico, à linguagem, ao significado e ao papel da ideologia na arquitetura, bem como questões sobre a inserção da arquitetura na cultura e na história.

 

topo