“Resultaba imposible descubrir el verdadero color de la camisa de mi hijo Miguel. La prenda tenía todo tipo de manchas, además del fango y tizne usuales después de jugar. Exasperada le pregunté: Miguel, ¿Qué es lo que tienes en la camisa? Inclinó su cabeza para mirarse, se dio en el pecho unas palmadas de aprobación y dijo sonriente: un día entero de mi vida.” [Eugenio Dittborn, Un día entero de su vida].
O trecho acima é extraído de um artigo publicado na Revista Reader´s Digest na década de 80, que foi enviado pelo artista chileno Eugenio Dittborn à bienal de Sydney em 1984 como parte integrante de sua exposição. Nele, a clareza que demonstra Miguel em reconhecer, nas manchas de sua roupa, sua própria existência – destituídas assim de seus contornos imprecisos, reconhecidas como materialização da própria vivencia do garoto – acabou por construir, para mim uma imagem muito forte.
Esta pesquisa é permanentemente marcada por tal relato. Estabeleceu-se a memória como campo de reflexão, por meio da qual se constrói um olhar capaz de reconhecer a existência e identidade dos objetos. A memória aqui é entendida , assim como defende Ulpiano Bezerra de Meneses, como construção social, formação da imagem necessária para os processos de constituição de identidade, capaz de reorganizar o universo das pessoas e das coisas. Revelar a memória constitui, portanto, parte de um processo de reconhecimento de si mesmo.
Enquanto se estabeleceu a memória como campo de reflexão, a cidade de São Paulo foi definida como objeto de estudo. Entendida por meio dos seus processos de urbanização a cidade passa a ser considerada plataforma das mais distintas manifestações e organizações sociais. Acreditando ainda, que a cidade é mais facilmente compreendida pelo trabalho cumulativo do homem ao longo do tempo, se busca fazer uma leitura, um reconhecimento do território metropolitano, e de suas dinâmicas de construção e constante transformação ao longo de sua existência. Não se propõe recriar ou recontar a história da cidade de São Paulo, mas sim perceber algumas das dinâmicas relativas à sua produção que implicariam, finalmente, a imagem construída deste território ao longo do tempo. O trabalho se aproxima, então, daquele realizado por um cronista.
Decidiu-se estabelecer um recorte territorial preciso dentro da vasta trama urbana existente partindo de um questionamento: haveria alguma parte da cidade - aqui entendida em seus limites urbanos e não administrativos- representativa dos processos de construção urbana que acometem toda a metrópole? Ainda sem saber precisamente a resposta, definiu-se como recorte a ser estudado um trecho da Serra do Mar.
A escolha por estudar um trecho da Serra do Mar parte do pressuposto que esta porção do território metropolitano sempre foi um suporte territorial de manifestações políticas, econômicas, culturais e sociais. Território inconcluso, em constante processo de construção, ainda acumula, diferentemente do resto da trama urbana, uma série de incursões do homem sobre a paisagem, que segue modificando-a drasticamente. Mesmo antes da chegada dos portugueses ao continente e muito anterior aos processos de urbanização que alcançaram seus limites e algumas parcelas de seu interior, uma vasta rede de trilhas indígenas cruzava essa região de modo a garantir a plena circulação e o fluxo de índios. Após a chegada dos portugueses e, principalmente a partir do século XIX, com a explosão do desenvolvimento urbano da antiga Vila de Piratininga – fruto do desenvolvimento econômico - essa rede de caminhos cresceu enormemente, impulsionada por esforços de inúmeros setores sociais que alternavam entre si a posição de protagonistas nos processos de transformação da malha urbana. A memória, portanto, que carregam esses caminhos, esparsos por entre os vales e escarpas da serra, se articula à memória dos movimentos que conformam a construção do tecido metropolitano. A circulação, seja ela de bens, de viajantes, de animais, é característica de qualquer civilização e sua expressão física ou cultural revela condições de sua própria existência. Nesse sentido pode-se afirmar que conhecer os caminhos que cruzam a Serra nada mais é que conhecer a metrópole.
A abordagem do tema se realizou por meio de dois campos de estudo, realizados concomitantemente: o primeiro, um olhar para esses caminhos a partir de suas expressões culturais definidas: pelas vozes de viajantes estrangeiros do século XIX, que cruzaram a antiga calçada do Lorena; pelos relatórios e publicações cientificas veiculadas pelo Departamento de Estradas de Rodagem a partir da década de 1930; por alguns repórteres de periódicos correntes; e por imagens, desenhos, cartografia e fotografias que permeiam os últimos dois séculos. O segundo campo, por meio da apreensão desses caminhos fisicamente. Para isso foram empreendidas algumas viagens que receberam a denominação de travessias. A escolha por esse nome surge frente à vontade de revelar seu sentido de maneira mais explícita: cruzar e apreender o território por meio do percurso, ação tida como mais importante que atingir algum ponto específico
A potência das imagens e relatos reunidos, somada à experiência de percorrer esse território indicou um conjunto de possibilidades. Primeiramente se arma uma espécie de álbum de família, que reúne as imagens e relatos desprovidos de uma organização cronológica ou hierárquica, mas que busca associar o material encontrado segundo alguns temas relativos à construção do lugar e da cidade. A compilação desse material suscitou posteriormente a elaboração de um breve histórico, que narra as sucessivas transformações, buscando traçar paralelos entre os distintos tempos e o espaço. Por fim se propõe um conjunto de intervenções em um dos caminhos estudados e percorridos, capaz de afirmar os caminhos como retratos da produção do território metropolitano, cabendo à arquitetura proposta o papel de revelar uma parcela da memória e da identidade da cidade.