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secao 4!

Os caminhos da Serra do Mar e o desenvolvimento metropolitano

Carlos Eduardo Collet Marino

Luís Antônio Jorge

“Resultaba imposible descubrir el verdadero color de la camisa de mi hijo Miguel. La prenda tenía todo tipo de manchas, además del fango y tizne usuales después de jugar. Exasperada le pregunté: Miguel, ¿Qué es lo que tienes en la camisa? Inclinó su cabeza para mirarse, se dio en el pecho unas palmadas de aprobación y dijo sonriente: un día entero de mi vida.” [Eugenio Dittborn, Un día entero de su vida].

O trecho acima é extraído de um artigo publicado na Revista Reader´s Digest na década de 80, que foi enviado pelo artista chileno Eugenio Dittborn à bienal de Sydney em 1984 como parte integrante de sua exposição. Nele, a clareza que demonstra Miguel em reconhecer, nas manchas de sua roupa, sua própria existência – destituídas assim de seus contornos imprecisos, reconhecidas como materialização da própria vivencia do garoto – acabou por construir, para mim uma imagem muito forte.

Esta pesquisa é permanentemente marcada por tal relato. Estabeleceu-se a memória como campo de reflexão, por meio da qual se constrói um olhar capaz de reconhecer a existência e identidade dos objetos. A memória aqui é entendida , assim como defende Ulpiano Bezerra de Meneses, como construção social, formação da imagem necessária para os processos de constituição de identidade, capaz de reorganizar o universo das pessoas e das coisas. Revelar a memória constitui, portanto, parte de um processo de reconhecimento de si mesmo.

Enquanto se estabeleceu a memória como campo de reflexão, a cidade de São Paulo foi definida como objeto de estudo. Entendida por meio dos seus processos de urbanização a cidade passa a ser considerada plataforma das mais distintas manifestações e organizações sociais. Acreditando ainda, que a cidade é mais facilmente compreendida pelo trabalho cumulativo do homem ao longo do tempo, se busca fazer uma leitura, um reconhecimento do território metropolitano, e de suas dinâmicas de construção e constante transformação ao longo de sua existência. Não se propõe recriar ou recontar a história da cidade de São Paulo, mas sim perceber algumas das dinâmicas relativas à sua produção que implicariam, finalmente, a imagem construída deste território ao longo do tempo. O trabalho se aproxima, então, daquele realizado por um cronista.

Decidiu-se estabelecer um recorte territorial preciso dentro da vasta trama urbana existente partindo de um questionamento: haveria alguma parte da cidade - aqui entendida em seus limites urbanos e não administrativos- representativa dos processos de construção urbana que acometem toda a metrópole? Ainda sem saber precisamente a resposta, definiu-se como recorte a ser estudado um trecho da Serra do Mar.

A escolha por estudar um trecho da Serra do Mar parte do pressuposto que esta porção do território metropolitano sempre foi um suporte territorial de manifestações políticas, econômicas, culturais e sociais. Território inconcluso, em constante processo de construção, ainda acumula, diferentemente do resto da trama urbana, uma série de incursões do homem sobre a paisagem, que segue modificando-a drasticamente. Mesmo antes da chegada dos portugueses ao continente e muito anterior aos processos de urbanização que alcançaram seus limites e algumas parcelas de seu interior, uma vasta rede de trilhas indígenas cruzava essa região de modo a garantir a plena circulação e o fluxo de índios. Após a chegada dos portugueses e, principalmente a partir do século XIX, com a explosão do desenvolvimento urbano da antiga Vila de Piratininga – fruto do desenvolvimento econômico - essa rede de caminhos cresceu enormemente, impulsionada por esforços de inúmeros setores sociais que alternavam entre si a posição de protagonistas nos processos de transformação da malha urbana. A memória, portanto, que carregam esses caminhos, esparsos por entre os vales e escarpas da serra, se articula à memória dos movimentos que conformam a construção do tecido metropolitano. A circulação, seja ela de bens, de viajantes, de animais, é característica de qualquer civilização e sua expressão física ou cultural revela condições de sua própria existência. Nesse sentido pode-se afirmar que conhecer os caminhos que cruzam a Serra nada mais é que conhecer a metrópole.

A abordagem do tema se realizou por meio de dois campos de estudo, realizados concomitantemente: o primeiro, um olhar para esses caminhos a partir de suas expressões culturais definidas: pelas vozes de viajantes estrangeiros do século XIX, que cruzaram a antiga calçada do Lorena; pelos relatórios e publicações cientificas veiculadas pelo Departamento de Estradas de Rodagem a partir da década de 1930; por alguns repórteres de periódicos correntes; e por imagens, desenhos, cartografia e fotografias que permeiam os últimos dois séculos. O segundo campo, por meio da apreensão desses caminhos fisicamente. Para isso foram empreendidas algumas viagens que receberam a denominação de travessias. A escolha por esse nome surge frente à vontade de revelar seu sentido de maneira mais explícita: cruzar e apreender o território por meio do percurso, ação tida como mais importante que atingir algum ponto específico

A potência das imagens e relatos reunidos, somada à experiência de percorrer esse território indicou um conjunto de possibilidades. Primeiramente se arma uma espécie de álbum de família, que reúne as imagens e relatos desprovidos de uma organização cronológica ou hierárquica, mas que busca associar o material encontrado segundo alguns temas relativos à construção do lugar e da cidade. A compilação desse material suscitou posteriormente a elaboração de um breve histórico, que narra as sucessivas transformações, buscando traçar paralelos entre os distintos tempos e o espaço. Por fim se propõe um conjunto de intervenções em um dos caminhos estudados e percorridos, capaz de afirmar os caminhos como retratos da produção do território metropolitano, cabendo à arquitetura proposta o papel de revelar uma parcela da memória e da identidade da cidade.

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