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secao 4!

A METRÓPOLE E O ESPELHO

FERNANDO TÚLIO SALVA ROCHA FRANCO

MáRIO HENRIQUE SIMãO D'AGOSTINO

Ensaios de deformação fotográfica da paisagem urbana propiciaram, primi lumi, um percurso, nos domínios da visibilidade, por duas sendas reflexivas; uma teórica e outra prático-experimental.

Paris, cidade dos espelhos. Tal definição dada por Walter Benjamin é, por ele mesmo descrita, "capital do século XIX", marco simbólico do início da modernidade, orienta este estudo que busca compreender a profusão de reflexos e espelhamentos na arquitetura da cidade como elemento emblemático da condição de vida metropolitana.

Nas metrópoles, centros da economia monetária, tudo se homogeneíza e se arruína sob a égide do novo. Consoante a um tempo efêmero, fragmentado e acelerado, o espaço assume forma abstrata e continuamente descontínua.

Analisar e explorar as permutas entre vidente e visível, entre imagem e olhar, por meio do conceito benjaminiano de imagem dialética, pode ser revelador dos moventes que, sob forja monetária, perfazem as fantasmagorias da abstração na metrópole moderna.

MODERNIDADE, ESPELHOS NA METRóPOLE

Walter Benjamin definiu a cidade de Paris, por ele mesmo descrita capital do século XIX, marco simbólico do início da modernidade, como a cidade dos espelhos. A compreensão desta definição orienta este estudo que busca compreender a profusão de reflexos e espelhamentos na arquitetura da cidade como elemento simbólico da condição de vida metropolitana.

"Paris, a cidade dos espelhos" é mais do que uma alegoria recorrente, do que uma estratégia poética que ressoa nas descrições das passagens e espaços interiores, na definição baudeleriana de choc, um "caleidoscópio dotado de consciência" e da noção do novo que, segundo Benjamin, como um jogo de espelhos reflete a repetição do sempre igual.

O dinheiro, como um espelho, tudo iguala. Nas palavras de Olgária Matos, em A cidade perversa e o esgotamento do prazer, se universaliza como um ideal de civilização. O espaço metropolitano, locus por excelência da modernidade, configura-se assim como o principal centro da economia monetária em que, segundo Simmel, as trocas baseiam-se em interesses intelectualmente calculistas.

O TEMPO FRAGMENTADO

As experiências perceptivo-corpóreas, com a modernidade, deixam de fundamentar-se em um moto continuum ao passo que transferem-se para um outro, fragmentado e efêmero. O tempo acelera-se, racionaliza-se e abstrai-se. Submete-se, na metrópole, segundo Simmel, é realização da mais pontual integração de todas as atividades e relações mútuas em um calendário estável e impessoal.

As inovações tecnológicas que se difundiram essencialmente a partir do século XIX, tais como os relógios de bolso, a luz elétrica e o fósforo substituíram um conjunto de operações complexas por um único gesto, criando condições, ainda segundo o autor, para a intensificação dos estímulos nervosos e ampliação da quantidade de horas potencialmente produtivas de um dia. Neste contexto, as relações de trabalho cientificizam-se e impessoalizam-se.

Em Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin definiu tais condições como "impossibilidade de experiência"; ampliação dos laços abstratos, impessoais, coisificados e vazios entre os indivíduos.

O Choc, experiência perceptivo-corpórea efêmera e fragmentária foi definida por Baudelaire como um "caleidoscópio com consciência". Jogo de espelhos em que o real e o virtual confundem-se frente a multiplicação de imagens que se transformam em um movimento acelerado de rupturas contínuas.

A COISIFICAçãO DO EU

A multidão impõe ao homem metropolitano uma condição de indiferença tal como a impessoalidade característica da uniformidade das relações de trabalho, que favorece o esvaziamento dos vínculos afetivos.

Reduzidos, pela economia monetária e pela racionalidade calculista, a um número na multidão, os indivíduos, isolados, reagem com o que Simmel, definiu como atitude blasé, resultado dos estímulos contrastantes que, em rápida mudança e compreensão concentrada de tal modo que os indivíduos tornam-se incapazes de reagir a novas sensações com a energia apropriada, dada a rapidez e contraditoriedade destas.

Destes mesmos estímulos, nos embates com a multidão, emerge o flÂneur, Deambulava pelas ruas de Paris na primeira metade do século XIX calmamente, segundo Walter Benjamin, "a fazer botânica do asfalto." Seduzido pelas imagens, colecionava-as embriagado pelas sensações despertas pelo fetiche das mercadorias.

O SEX-APPEAL DO INORGâNICO

A fantasmagoria é o elemento mais "real" da relação, estabelecida na contemporaneidade, entre sujeitos e objetos. Segundo Olgária Matos, a "imersão do homem no reino da matéria" corresponde, na modernidade, é transferência da dimensão aurática dos objetos para uma outra, fetichizada.

A reprodutibilidade técnica, segundo Benjamin, desvincula as coisas do seu aqui e agora, inerentes ao domínio da tradição. Aumentam-se assim as ocasiões para que elas sejam expostas.

Os objetos, imersos neste processo de inversão de valores, ganham vida, transpiram a sex-appeal, ao passo que os corpos, orgânicos, coisificam-se.

O ESPAçO ABSTRATO

Com a prevalência da economia do dinheiro tanto o espaço construído como a experiência perceptivo-corpórea espacial, de maneiras conexas, adquirem, na metrópole, uma dimensão abstrata, esvaziada de sentido.

A cidade, organizada sob a premissa monetária, estrutura-se como um espaço simultaneamente homogêneo, continuamente descontínuo, e diferenciado dada a distribuição desigual de investimentos.

As passagens e os "recantos envidraçados" da Paris oitocentista, como observado por Benjamin, simbolizam a dimensão espectral do espaço; mais do que iluminar o interior pretendia-se "atenuar o espaço exterior".

A experiência do choque, para além do embotamento, no âmago da sua ambiguidade, pode desencadear, segundo Vladimir Safatle "um encontro traumático com o real". Um olhar inquieto, instável pode desestabilizar a apreensão abstrata e quantificadora da 'realidade', compreendendo-a para além reificação. No ato da visão, uma imagem dialética pode interpelar o sujeito, surpreendendo-o pelos vestígios auráticos, pela carnalidade oculta, ausentemente presente.

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