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secao 4!

NARRATIVAS ARQUITETÔNICAS EM 4 VOLUMES

Marina Franco Pappa

Artur Simões Rozestraten

Este trabalho surge de um certo encantamento e de uma aproximação muito pessoal minha com o livro. Ao longo dos anos, durante o curso da faculdade de arquitetura e urbanismo, minha relação com este objeto foi se transformando na medida em que eu explorava suas qualidades físicas, visuais, e espaciais a partir de referenciais pr"prios da arquitetura e do urbanismo: conceitos que eram introduzidos e aplicados nos projetos desenvolvidos durante a faculdade - quase sempre projetos de edfiício e de planejamento urbano - reapareciam quando eu investigava o espaço tridimensional do livro.

Desta investigação surgiu a vontade de explorar com mais entusiasmo as possíveis relaçãos entre o livro, a arquitetura e a cidade, focando principalmente os aspectos da construção espacial e da apreensão do espaço pelos usuários.

A falta de bibliografia específica sobre o assunto foi a primeira dificuldade encontrada para o desenvolvimento do trabalho. Mesmo que os livros de Hist"ria da Arte, da Arquitetura e do Livro apresentem relações entre a produção artística de uma mesma época (e aí estão incluídas a produção gráfica/editorial, assim como a produção de edfiícios e espaços urbanos), são raras as comparações entre os elementos que estruturam o espaço do livro e da arquitetura, o que possibilitaria uma aproximação entre livros, edifício e cidades de qualquer tempo.

O início do trabalho caminha neste sentido, e busca o reconhecimento de possíveis elementos que exercem função análoga na estruturação do espaço, do percurso e das qualidades visuais destes três objetos. O resultado foi um sistema de analogias que tornaram a comparação entre o livro, a arquitetura e o urbanismo mais palpável já que não estariam mais relacionados por um momento histórico (o "espírito do tempo"), mas sim por suas qualidades próprias de objeto tridimensional, fruto de projeto e construção, e que, sobretudo, se relacionam com o usuário através do tempo e do espaço percorrido.

Assim, durante o tfg1 o esforço maior foi no sentido de delimitar e conceituar o objeto de estudo. Dado o caráter propositivo do tema, a linguagem verbal parecia não dar conta de evidenciar as ideias do trabalho. Por isso, o tfg1 termina com dois produtos - partes de um mesmo objeto: o caderno que continha o relatório de desenvolvimento do trabalho foi projetado a partir do estudo de um edifício específico - a Bauhaus de Dessau. O caderno seria então um objeto análogo (nos termos propostos pelo sistema de analogias) a este edifício. Assim, o reconheciemnto das ideias do trabalho seria feito através da conjunção da linguagem verbal, escrita do relatório, com a experimentação material do objeto.

Revendo o tfg1 entendi que seguir com a construção de um novo caderno nos mesmos moldes do anterior (a parir da análise de um edifício) seria repetitivo e enfadonho. Não tanto pela ação, mas sim porque colocava o sistema de termos análogos como algo rígido e necessário para a construção de uma justifictiva para o projeto de um objeto, quando, na verdade, o objeto não precisaria ser justificado - pelo contrário, a intenção era de que o objeto provocasse inquietações mais do que justificativas.

Neste contexto surge a ideia dos volumes narrativos aqui apresentados: construções que remetem ao formato do livro, da caixa, do edifício, e que discutem, cada uma delas, alguns apectos colocados pelo sistema de analogias. Volumes porque, primeiro, são objetos tridimensionais, segundo, por ser esta a mesma nomenclatura que damos às partes de uma obra literária. Narrativa porque durante o processo de manejo do conteœdo de cada um dos quatro volumes o usuário é convidado à criar conexões entre os elementos dotando o espaço de sentido, de hist"ria e identidade - a narrativa como resultado de uma troca de experiências.

LIVRO E ARQUITETURA

O livro como conhecemos hoje surge de um longo processo de transformação da escrita, do suporte, da demanda, da técnica, da indœstria, podendo ser definido de várias maneiras, tanto pelo seu aspecto físico como por sua carga simbólica:
"Fisicamente o livro é um conjunto de folhas impressas - agrupadas em fascículos ou cadernos numerados em ordem crescente e costurados para funcionar como sanfona - inseridas, coladas e protegidas por uma encadernação ou capa. [...] Usado em primeira instância como apoio teórico do patrimônio cultural da Humanidade, pode-se defini-lo como se queira, por exemplo: "símbolo de todas as coisas importantes que lhe foram confiadas, com o propósito de ocultá-las da maioria ou evitar que se percam ao longo do tempo"

Antes do livro, o registro da expressão humana era feito através de "escritas de imagens": pinturas rupestres e entalhos marcaram superfícies naturais de cavernas, montanhas e edificações. As experiências, os saberes e invenções eram traduzidas em inscrições que se confundiam com o próprio lugar, e assim, o registro e a arquitetura eram indissociáveis. Mais tarde, a marcação feita em grandes blocos de pedra (megalitos) cede lugar a pedaços menores, suportes móveis de diversos tipos de pedras, placas de argila e de madeira que eram depois agrupadas e numeradas. Também eram utilizados pedaços de ossos e cascas de árvore.

Por volta de 2.200 a.C, com o desenvolvimento da técnica do papiro pelos egípcios, o suporte, antes rígido, passa a ser substituído por outro, flexível, responsável pela inauguração de uma nova modalidade de livro: os rolos de papiro.

A fabricação de papiro, que era monopólio do Egito até o século XII, chegava aos outros países do mediterrâneo através da exportação. Contra esta dependência, o rei de Pérgamo (Turquia) buscou alternativas de abastecimento para poder desenvolver sua biblioteca. A solução encontrada contou com invenção do pergaminho, um novo suporte produzido através do preparo da pele de animais.

Se a necessidade levou ao desenvolvimento de novas técnicas e suportes, estes modificaram a relação do leitor com o livro, já que a percepção desse objeto é dada tanto pelo embate físico do contato do leitor com a materialidade do suporte, como pela apreensão do seu conteœdo (o assunto, ou tipo de texto, e sua organização no suporte). Como o papiro era frágil, não podendo ser dobrado, o texto era escrito em uma coluna ou série de colunas, sendo as linhas, em geral, escritas paralelamente ao maior lado do rolo. As margens entre as colunas eram estreitas, e quanto mais comum era o assunto, mais reduzido se tornava o espaço para as margens. O pergaminho, mais resistente, introduz a pausa à leitura: podendo ser dobrado uma nova relação é estabelecida com o leitor no virar das páginas, que agora são apreendidas de maneira autônoma. A mão do leitor, que antes precisava segurar os bastões dos rolos de papiro, podem, com o livro de pergaminho, ficar livres para percorrer o espaço das páginas.

Com a difusão do cristianismo, entre os séculos II e IV, o livro ganha o aspecto que nos é familiar, em estrutura e organização espacial: divisão de capítulos, paginação, incremento de acabamento e encadernação. Apresentando um estrito vílculo com a Igreja Católica, até o século XII os livros são bens do mosteiro ou da abadia e carecem de valor de mercado. Com o Renascimento Urbano - que marca a multiplicação de escolas e a difusão do saber nas cidades - um novo ritmo se impõe à produção e demanda editoriais: o livro religioso cede lugar ao livro laico. E para atender a essa nova escala de mercado o processo produtivo é reorganizado em corporações de ofício que são estruturadas na divisão do trabalho.

É igualmente resultado da pressão do mercado o surgimento dos exemplares: "uma cópia oficial, validada por autoridades universitárias é atestada prezando pela correção e integridade da obra" e alugada ou emprestada para que estudantes ou copistas produzam suas próprias cópias - um sistema pouco custoso que torna possível o aumento da difusão dos livros e, por consequência, do conhecimento durante o século XII.

É também nesse momento da história do livro que o papel, de origem chinesa, será introduzido no Ocidente através do mundo árabe, substituindo rapidamente o pergaminho por apresentar maior possibilidade comercial (é menos custoso) e por adaptar-se tão bem às finalidades de leitura, transporte e armazenagem. A introdução deste novo suporte foi decisivo para a modificação do modo de produção de livros. Sem o papel, a velocidade e a eficiência da impressão mecânica teriam sido inúteis, já que a morosidade e o alto custo da produção do pergaminho seria um entrave para as grandes tiragens.

Tais transformações produtivas e mercadológicas fazem com que o livro deixe de ser propriedade das instituições religiosas e passem a conquistar um novo pœblico em ascensão: os estudantes universitários e a classe média emergente nas cidades. No entanto, o livro ainda mantém-se fora do alcance do cidadão comum, tanto pelo seu valor (a partir do século XIII os livros passam a ter valor comercial) como pelo alto índice de analfabetismo.

Visando o barateamento das cópias e o suprimento de um mercado em ampla ascensão, a cópia feita à mão deixa de ser suficiente e, a partir do século XIV, novos processos de impressão serão empregados na fabricação do livro: primeiro a xilografia e depois os tipos móveis.
O nascimento da tipografia introduz um novo conceito à produção editorial: a noção de projeto é introduzida na medida que a página precisa ser previamente configurada com os elementos tipográficos avulsos. Assim, além da transformação visual (a substituição do manuscrito pela impressão mecânica e famílias tipográficas), o processo de produção se modifica novamente, alterando o modo de trabalho e permitindo tiragens muito superiores do que se podia imaginar.

"A invenção da tipografia pode ser classificada ao lado da criação da escrita como um dos avanços mais importantes da civilização. Escrever deu à humanidade um meio de armazenar, recuperar e documentar conhecimento e informações que transcendiam o tempo e o espaço; a impressão tipográfica permitiu a produção econômica e múltipla da comunicação alfabética."

O livro se moderniza e, a partir a metade do século XVI ele apresenta um aspecto visual e morfológico (capa, ante-rosto, rosto, dedicatória, sumário, prólogo ou inicio do texto, capítulos, apêndices, bibliografia, remissivos, guarda, sobrecapas, lombada)13 muito semelhantes dos livros produzidos hoje. Somente em fins do século XIX e início do século XX, com a introdução dos livros-objeto e livros de artista, que a morfologia do livro passa a apresentar novas características (formatos, materiais, estrutura narrativa) e o livro passa a ser compreendido como objeto e não mais como um mero suporte à palavra escrita.

Nesse sentido, o poeta francês Stéphane Mallarmé (1848-1898) pode ser considerado um pioneiro na reinvenção do livro. No seu poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, de 1897, o texto é pensado também como forma gráfica: apresenta tipos de tamanhos e pesos variados sugerindo a leitura também como apreensão de uma estrutura visual, onde o branco da página é tido como elemento significante, representativo da pausa na leitura. Através da proposta de uma estrutura não-linear Mallarmé explora, através da tipografia, as várias possibilidades de leitura, infinitos trajetos que rompem com a bi-dimensionalidade da página já que o livro "deveria ser manipulado como um objeto, um bloco a ser esculpido, visto não na superfície da página, mas em sua profundidade".

Em 1968, o artista plástico e poeta Marcel Broodthaers (1924-1976) apresenta um releitura do poema de Mallarmé substituindo as palavras por linhas pretas que respeitam o peso e o espaçamento entre os elementos impostos na versão original. Ao subtrair a palavra escrita, a "leitura" se torna rítmica, e acontece pela presença indispensável do branco do papel. Impresso em papel vegetal, Broodthaers ressalta a tridimensionalidade do "texto" e reafirma as inœmeras possibilidades de percursos oferecidas pelo livro.

No entanto, se Mallarmé propõe um entrelaçamento profundo entre texto (narrativa) e estrutura do livro, sua forma não apresenta muitas novidades. As Caixas Marcel Duchamp (1887 - 1968) - a Caixa de 1914, a Caixa-valise (1936-1941) e a Caixa Verde (1934) - são possivelmente os primeiros exemplos de ruptura com a forma do livro: o suporte para o registro não são mais as páginas, mas sim uma caixa, na qual diversos itens - reproduções de algumas das obras de Duchamp - são guardados. Nesse momento, o livro se transforma em caixa, o texto tipográfico, em pinturas, fotografias e objetos; itens que são agora os responsáveis pela construção da narrativa.

Assim, ambas as experiências, de Mallarmé e de Duchamp, se colocam como fundadoras do pensamento contemporâneo sobre livro: Mallarmé pela introdução da espacialidade visual das palavras e pelo enlaçamento entre conteœdo e objeto, e Duchamp por abrir novas possibilidades de suportes e formatos que não aqueles encontrados nos livros tradicionais.

No Brasil, a poesia concreta dos anos 1950-60 apresentará profundas relações com ambos os artistas: "[É] situação já presente em Mallarmé, [É] a potencialidade visual e a presença física dadas ao texto, por parte dos poetas concretos, o leva a tornar-se simultaneamente imagem e objeto." Assim, o poema só existe porque o livro existe como objeto; objeto este que agora é também obra de arte.

Após esse breve percurso pela História do Livro no Ocidente, fica a pergunta: qual seriam então as possíveis relações entre o livro e a arquitetura?
Phillip Meggs introduz ambos - o livro e a arquitetura - no que ele chama de "artes do desenho", que seriam capazes de expressar o "espírito do tempo", ou seja, "as tendências e preferências culturais características de determinada era. O caráter imediato e efêmero do design gráfico, combinado com sua ligação com a vida social, política e econômica de uma determinada cultura, permite que ele expresse mais intimamente o Zeitgeist16 de uma época do que muitas outras formas de expressão humana."

De fato, a forma plástica da arquitetura e da produção gráfica se mostraram, principalmente na modernidade, muito semelhantes tanto em sua maneira de pensar a organização espacial, como em qualidades visuais, estéticas. As técnicas e materiais, é claro, se distinguem.
Mas a relação entre livro e arquitetura também pode ser encontrada num momento mais inicial de formação do livro, prescindindo da contemporaneidade das obras. Atentando para os elementos constitutivos do livro, vemos que alguns conservam ainda a antiga e misteriosa terminologia arquitetônica: falso frontispício (ou falsa folha de rosto), folha de rosto ou frontispício (frequentemente decorado com desenhos arquitetônicos envolvendo títulos e legendas, sobretudo nos séculos XVI, XVII e XVII); pórtico (do prólogo); margens; blocos ou colunas (da morfologia das manchas de texto).

A partir da própria terminologia podemos propor uma outra relação entre o livro e a arquitetura que será bastante cara a este trabalho: a noção de percurso. Ao nomear de frontispício a primeira página de um livro, sendo aquela que traz o título e nome do autor, propõe-se que esta página é análoga à entrada principal de um edifício, decorada e enquadrada pelo frontispício. O percurso seguiria através do pórtico, até atingir a parte central do livro (ou da edificação) que se revela estruturada por blocos e colunas.

Como no edifício, a compreensão do espaço do livro acontece neste percurso pelos seus vários planos e espaços: página após página, o corpo do leitor percorre todo o ambiente para que, ao fim, seja possível compreender o volume como um todo (sua forma e seu conteœdo). Contudo, nunca é possível percorrê-lo em um œnico instante: o caminho se faz por uma sequência de momentos, sendo a memória do lugar por onde se passou algo necessário para que se possa compreender o lugar seguinte e, por fim, o todo da obra. Assim, a ação do corpo ocorre no espaço e também no tempo.

A estrutura da narrativa, a posição dos elementos de referência (notas, índices remissivos, legendas e créditos) no volume e até mesmo as escolhas tipográficas (fonte, tamanho e espaçamento) impõe ao leitor uma maneira e um ritmo para percorrer o volume. Quando, por exemplo, as notas se encontram ao lado da coluna do texto, o deslocamento pelo espaço é bastante rápido, oposto do que acontece quando as notas estão localizadas ao fim do texto, o que exige um movimento constante de ir e vir pelo espaço do livro. No edifício, a organização do programa, a relação entre os ambientes e seu posicionamento no volume também implicam em uma proposta de deslocamento do corpo no espaço construído.

Se falamos de espaço construído em arquitetura, falamos, necessariamente de estrutura e material. As escolhas que envolvem o sistema estrutural (estrutura independente ou estrutura auto-portante), os materiais da estrutura (concreto, metal, madeira, pedra) assim como de acabamento e revestimento (pintura, azulejaria, laminados) alteram não só o espaço construído mas também a maneira como o percebemos. Igualmente, a escolha do suporte, das tintas para impressão e o modo de encadernação alteram nossa percepção sobre o livro.

Bruno Munari atenta à materialidade do livro:
"Normalmente, quando se pensa em livros o que vem à cabeça são textos, de vários gêneros: literário, filosófico, histórico, ensaístico, etc., impressos sobre as páginas. Pouco interesse se tem pelo papel, pela encadernação, pela cor da tinta, por todos os elementos com que se realiza o livro como objeto. Pouca importância se dá aos caracteres gráficos e muito menos aos espaços brancos, margens, numeração das páginas e todo o resto. O objetivo dessa experimentação [O livro ilegível] foi verificar se é possível utilizar como linguagem visual o material com que se faz um livro (excluindo o texto). O problema, portanto, é: o livro como objeto, independentemente das palavras impressas, pode comunicar alguma coisa, em termos visuais táteis? O quê?"

A falta de interesse pelo aspecto formal, material do livro pode estar muito vinculada à nossa educação que se baseia, sobretudo, na palavra escrita deixando para o segundo planos os outros cinco sentidos. O saber do corpo cede lugar ao saber racional, diminuindo a nossa capacidade de leitura dos materiais que comunicam coisas importantes e às vezes de maneira mais simples do que a palavra escrita: suas qualidades podem, por exemplo, revelar o lugar onde o livro foi produzido, quando foi produzido, e para quem. Revelações tais que se fazem por meio do tato, da visão, do olfato e, quem sabe até pela audição (que som as páginas emitem ao serem folheadas?).

Na arquitetura o estudo dos materiais é de extrema importância para que estes sejam empregados adequadamente, atingindo os resultados plásticos, espaciais e estruturais desejados. Entender as qualidades estéticas e propriedades estruturais, de durabilidade e resistência de cada material é parte do conhecimento técnico dos arquitetos, sendo a obra edificada o resultado do embate constante entre o projeto (o desejo de quem faz) e as possibilidades/restrições impostas pelos materiais. A produção de livros pode, e deve, também incorporar o estudo dos materiais: tipos e qualidades de papel, técnicas de impressão, possibilidades de acabamento e encadernação, entre outros.

O PROJETO NO LIVRO E NA ARQUITETURA

A ação projetual, a concepção prévia de algo a ser executado à posteriori, adentra o campo da arquitetura no mesmo período que o faz no campo editorial. O Renascimento (séculos XIV e XV) marca, entre outras tantas coisas, a transformação no modo de produção destes dois campos, momento em que o pensamento projetual será indispensável para a realização do trabalho.

Na arquitetura esta transformação é marcada pela construção da cœpula de Santa Maria del Fiori (1418), quando o arquiteto e escultor Filippo Brunelleschi, ao se deparar com um problema técnico-construtivo, "inventa" um novo procedimento para executar a obra: agora, o fazer dos artesões seria coordenado pelo arquiteto, sendo este o œnico responsável pelo projeto. Deste momento em diante, a experiência do canteiro caminharia em paralelo à experiência do projeto da edificação.

Na produção editorial, o conceito de projeto é introduzido pela invenção da tipografia, que ocorre por volta de 1450. A necessidade de organizar previamente os espaços da página, de escolher a família tipográfica e os tamanhos do tipo, entre outras tantas decisões, fez com que os tipógrafos (ou compositores) executassem seu trabalho de maneira distinta dos copistas, estudando possibilidades novas de arranjo e composição antes realizar as impressões finais.

ARQUITETURA E DESIGN GRÁFICO

A palavra arquitetura possui significado amplo: do grego arkhé significando "primeiro" ou "principal" e ékhton significando "construção", refere-se à organização do espaço e de seus elementos por meio do projeto. Se desde o surgimento da profissão coube ao arquiteto o projeto de edifícios e espaços urbanos, é na modernidade que este profissional é inserido no campo da atividade editorial:
"Seja como for, essa tarefa [a realização do projeto gráfico do livro] ficou tacitamente em mãos do impressor até o fim do século XIX, quando alguns editores começaram a confiar tais assuntos a arquitetos, artistas, desenhistas - em suma, a profissionais suscetíveis de envolver-se competente e imaginativamente na forma embrionária da cultura impressa."

Desde então, o vínculo entre produção gráfica e arquitetônica foi sendo estreitado dentro das próprias instituições de ensino de arquitetura e urbanismo, processo que se inicia com a criação da Bauhaus e que se estende até os dias de hoje (mesmo com a proliferação de instituições de ensino voltadas unicamente ao ensino de design25, algumas das principais faculdades de arquitetura e urbanismo conservam em sua grade curricular disciplinas de projeto e produção gráfica).

As teorias sobre a forma empregadas na Bauhaus buscavam a construção de um design universal: a forma traduzida em elementos geométricos seria apreendida e percebida por todas as pessoas de maneira semelhante, independente do momento histórico ou da cultura de cada um. Assim, a partir do estabelecimento de princípios de organização da forma seria possível criar um vocabulário racional, uma linguagem visual compartilhada por todos de maneira indistinta.

O pós-modernismo, que surge nos anos 1960 critica a busca por um significado inerente a uma imagem ou objeto já que sua apreensão será dada na relação com a pessoa, que carrega em si conceitos culturais e experiências pessoas.

Apesar de tais críticas, o desafio proposto pela Bauhaus em descrever (mas não interpretar) a linguagem da visão de maneira universal possibilitou, por exemplo, aos programadores de hoje a organização de elementos visuais em ferramentas padrões para alguns softwers: o Photoshop por exemplo, faz um estudo sistemático das características de uma imagem (contraste, tamanho, transparência, etc.); o InDesign explora a estrutura da tipografia no controle das entrelinhas, alinhamento, organização das colunas, etc. Tais ferramentas evidenciam a presença de alguns conceitos, ou atributos universais, nos vários campos das "artes do desenho" (que incluem tanto a arquitetura como a produção gráfica, editorial). São fundamentais ao trabalho de organização espacial do arquiteto ou do produtor gráfico as ideias de ponto, linha e plano, ritmo e equilíbrio, escala, textura, cor, relação entre figura e fundo, hierarquia entre os elementos, entre outros.

PROPOSTA DO TFG

A proposta deste trabalho é, acima de tudo, experimentar e analisar a construção do livro como um objeto arquitetônico para assim traçar novas perspectivas para a compreensão tanto do livro quanto da arquitetura. Após um breve estudo sobre a História do Livro e a retomada de aspectos da História da Arquitetura, foi feito um levantamento de elementos visuais, espaciais e temporais (de percurso) que apresentam funções análogas numa obra de arquitetura ou num livro.

Tais elementos, ou termos de comparação, foram divididos em três categorias principais: a primeira refere-se ao conteœdo da obra ou do objeto que, em arquitetura é composto pela definição do programa de necessidades e, no livro, pelos textos e imagens.

A segunda diz respeito à volumetria da construção: a relação do objeto com seu entorno e com as pessoas revelam suas características de escala e proporção. Na arquitetura, o edifício deve ser considerado em relação ao terreno, aos edifício do entorno e aos seus usuários; já no caso dos livros deve-se atentar à sua relação com a estante, com os outros livros e com os leitores.

Para a definição do volume, um dos primeiros aspectos considerados é a taxa de densidade do volume (a proporção entre cheios e vazios). Na arquitetura, o coeficiente de aproveitamento e a taxa de ocupação do solo revelam a densidade do volume em relação ao terreno. Nos livros, a densidade do volume é definida pelas relação entre a mancha gráfica (que é determinada pelas margens da página, pelo tamanho e o tipo das letras, assim como seu espaçamento e entrelinhas) em relação à área da página. Em ambos os casos, assim como a mancha urbana, quanto mais densa for a ocupação, menor o espaço ocupado em extensão.

A organização dos elementos que compõe o volume da construção, assim como a definição de suas áreas, são outros dois aspectos importantes para a definição da volumetria da construção: em um primeiro momento, temos a organização do(s) volume(s) no lote, o que definirá o arranjo do programa, o mesmo que acontece quando o índice do livro é organizado. Temos então a enunciação das possibilidades de percurso pelo volume.

Num segundo momento, temos o que poderia ser considerado como a organização do volume em planta, ou seja, a distribuição dos elementos em planos de caráter bidimensional, como o andar (o pavimento) de um edifício ou a página de um livro. Neste momento atentamos, na obra de arquitetura, para a forma de organização dos ambientes (salas, corredores, prumadas de circulação, etc.) em planta, e, no livro, para a organização dos elementos que se repetem ao longo das páginas (lugar da numeração da página, do cabeçalho, da mancha gráfica).

A terceira e œltima categoria de comparação está relacionada à estrutura e aos materiais empregados na construção do edifício e do livro. Se o edifício tem estrutura composta por vigas, pilares e lages (quando temos um sistema de estrutura independente), a estrutura do livro se faz pela capa, contracapa, miolo, lombada e costura. Se o concreto, o aço, e a madeira são materiais utilizados na construção das estruturas do edifício, a materialidade da estrutura do livro depende do tipo e qualidade do suporte (papel, pergaminho, tecido, plástico, etc.) assim como dos tipos de tinta, técnica e qualidade de impressão. Por fim, os materiais de acabamento e revestimento, que variam entre pisos, tintas, azulejos, forrações; e vernizes, laminações, capas de proteção, entre outros.

PROCESSO REVISITADO

A construção de qualquer objeto enfrenta o problema da matéria. O projeto, o desenho, as contas matemáticas antecipam algumas das soluções construtivas, no entanto, a maior parte dos problemas e, consequentimente, dos acertos aparecem com mais evidência quando deixamos de pensar a partir da representação e enfrentamos o próprio objeto.

É claro que com a prática, com o exercício constante e o domínio de alguns saberes técnicos conseguimos aproximar cada vez mais o saber projetual do construtivo. Conhecer as propriedades dos materiais para saber suas possibilidades de uso e conhecer as máquinas e ferramentas disponíveis para saber o que pode ser feito por cada uma delas promovem uma nova relação com a prática da construção na medida em que se ampliam as possibilidades de execução.

Se o tfg1 caminhou entre leituras e escritos, culminando na construção de um objeto bastante singelo e pouco desenvolvido, o tfg2 aconteceu quase que integralmente no LAME (Laboratório de Modelos e Ensaios), um espaço que até então eu conhecia pouco. Assim, o resultado dos volumes passou por um longo processo de fatura e revisão do projeto.

É bem verdade que o projeto inicial demorou pra sair: a mudança no rumo do tfg após o primeiro semestre gerou um momento de pouca produtividade. As primeiras ideias que recolocaram o tfg no trilho apareceram em torno da ideia de narrativa e pela escolha de alguns dos temas abordados pelo sistema de analogia (desenvolvido no tfg1) como foco das construções.

O primeiro volume surgiu a partir do tema ocupação. Mas antes de ser volume, a construção ainda estava bastante planificada, contando com materiais corriqueiros do universo do livro: folhas de papel de diversas qualidades.

Da vontade de sair do plano bidimensional para o tridimensional veio a necessidade de ir para o LAME e explorar novos materiais. Pela disponibilidade de madeira e acrílico, estes foram os materiais mais estudados desde o início.

Contudo, só daria para avançar no projeto e construção dos volumes se o conteœdo estivesse minimamente definido. A ideia era encontrar uma construção que pudesse abarcar os quatro assuntos escolhidos: ocupação, cobogós, percursos, e, por fim, o relatório do tfg.

As ideias para os conteœdos surgiram com a produção de pequenos elementos que poderiam estar contidos no volume. O primeiro deles foi o desenho dos elementos vazados - cobogós e muxarabis - que se revelaram bastante interessantes. O projeto do volume tal como foram construídos na versão final, apareceu por conta destes desenhos de recorte.

E então percebi que o projeto do volume para os cobogós poderia abarcar facilmente o conteœdo da ocupação, sendo que agora, o lugar de folhas de papel poderiam ser utilizadas chapas de acrílico bem finas. Assim, decidi por um único projeto para todos os volumes, com pequenas alterações para que os componentes de cada um deles ficassem devidamente guardados.

O primeiro problema surgiu por conta da ausência da quarta face das lateriais do volume. A vontade era de ter um espaço contínuo quando o volume fosse aberto, e por isso, não poderia contar com uma das faces responsável pelo fechamento da volume.

Outra questão era a definição dos materiais. O LAME poderia disponibilizar uma quantidade de madeira e acrílico, mas não a quantidade suficiente para a execução de pelo menos 4 conjuntos de 4 volumes - fora os testes. Além disso, outros materiais que não madeira e acrílico eram necessários: espelho, papel, tachinha colorida, lanterna e elástico, o que exigiu a dedicação de um momento do trabalho à procura e compra de material.

As medidas do volume também foram sofrendo ajustes ao longo do processo. A máquina de corte à laser é incrivelmente precisa (cerca de 0.5mm de precisão), o que tornava as medidas executadas muito próximas do que havia sido calculado e projetado em desenho. No entanto, percebi que o ajuste final só poderia ser feito a partir da manipulação do objeto, já que outras variantes entravam em cena após o corte: as imprecisões na montagem (processo de lixar e de colar as peças), aplicação de revestimento (papel colorido), e imprecisões do próprio material (principalmente no acrílico de 1,3mm, que chegava a ter até 1,9mm na parte central da chapa).

Outro fator que balizou a dinâmica da fatura dos volumes foi a máquina de corte à laser. Sem a máquina este projeto não poderia ter acontecido, ao menos não com estas medidas no tempo que foram feitos.

A possibilidade de utilizar a máquina de corte à laser alterou o modo de se fazer muitos dos trabalho da fau. Durante o tempo em que passei no LAME vi maquetes, modelos e protótipos impecáveis, ao menos na execução. Sem sombra de dúvidas é uma delícia ter uma máquina como esta à disposição dos alunos. No entanto, ela é apensa uma, e a demanda pelo seu uso é enorme.

Assim, o uso da máquina tinha de ser controlado por tempo (cada aluno poderia utilizá-la por até uma hora por dia, em data e horário reservados antecipadamente) o que reduz as possibilidades de experimentação: o erro se tornava um enorme problema, não porque o projeto se mostrava falho, mas sim porque havia um tempo reduzido para novas tentativas. Ou seja, o projeto começou a ganhar um ritmo de solução dos problemas do projeto inicial, sem que nenhuma grande alteração ou experimentação tenha sido feita após os primeiros cortes à laser.

Mesmo sabendo disso, o modo como desenvolvi o projeto dos volumes contava plenamente com a máquina, dependia dela. E escolhi fazer deste modo pela praticidade, rapidez e precisão do corte, coisa que seria muito difícil de conseguir utilizando as serras normais, principalmente pelo meu parco conhecimento técnico das máquinas e ferramentas.

Mesmo que este trabalho tenha como foco principal discutir relações entre livro, arquitetura e urbanismo, o processo de fatura dos volumes foi muito envolvente e proporcionou descobertas importantes sobre vários aspectos do curso da fau. Como já disse anteriormente, eu quase não havia frequentado o LAME durante os anos em que fui aluna da fau, e fico feliz de ter passado os œltimos meses da minha formação no embate direto com a matéria dentro deste laboratório.

O que me levou à arquitetura foi em grande parte este mistério da construção. E foi ele também que me conduziu da arquitetura (como construção de edifícios) e do urbanismo (como planejamento urbano) para o design gráfico. A demora em ver realizado o projeto de um edifício me afligia, e aí percebi que no projeto de livros e impressos em geral o tempo é mais imediato, o projeto pode ser realizado mais rapidamente, e pode ainda ser revisto e refeito (algo difícil depois do edifício pronto).

Mas poucos meses são ainda um tempo muito curto para o tanto de conhecimento que podemos colher em espaços como os laboratórios da fau. A pesquisa continuará, agora já mais íntima com a prática da construção.

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