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secao 4!

CORPO E ESPAÇO:

A TRANSCRIAÇÃO EM SETE NARRATIVAS LITERÁRIAS

Marina Prado Sander Smit

Luís Antônio Jorge

Como ponto de partida tinha vontade de representar graficamente a cidade. A partir dos primeiros experimentos, o caminho tomado foi distanciando daquele previsto, até mesmo pelo caráter incerto e experimental da proposta inicial. Ao longo do percurso, a ideia de estudar um imaginário urbano, em uma visão generalizada das relações cidade-cidade e homem-cidade, foi gradualmente perdendo espaço para uma leitura bastante pessoal destas mesmas relações.

As experimentações gráficas, presentes desde o início do processo investigativo, buscaram no campo da semiótica, subsídios teóricos para a realização do trabalho que, em sua concepção final, caracteriza-se como um estudo acerca do corpo e do espaço através da seleção e tradução intersemiótica de sete narrativas literárias.

O início do trabalho se deu com leituras acerca do crescimento das cidades no século XIX e das mudanças na relação espaço-tempo daí derivadas. Este período é marcado pelas transformações sociais e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, como processos concomitantes, que fazem com que o homem se veja em um espaço nunca antes experimentado. Como reflexão desta primeira etapa ressalta-se a necessidade da época em entender e inserir o homem nesse novo contexto. Ele passa a viver com o choque dos novos acontecimentos, o tempo "está acelerado". O que importa não é mais o passado, mas sim o momento atual, o fugidio agora. As mudanças se dão de forma tão rápida, que o presente deve ser vivido sem a (inviável) preocupação de apreender todas as informações desse espaço ínfimo de tempo.

As primeiras experiências gráficas foram então desenvolvidas baseadas nessa inserção do homem na multidão. O resultado são cenários onde se pretendia perceber as personagens inseridas na multidão, sem termos uma idéia clara de lugares, ou uma determinada relação de espaço e tempo. Como contraponto a este processo de perda da identidade do qual sofre o homem da multidão, o trabalho procurou posteriormente uma aproximação maior à imagem individual. Comecei a buscar memórias que pudessem ser atreladas aos fragmentos das fotografias, partindo da leitura de textos de Gaston Bachelard, que afirma em "A poética do espaço" que memória e imaginação não se deixam dissociar. Uma e outra trabalham para seu aprofundamento mœtuo. Ao trabalhar com a memória envolvida nas imagens recortadas pode-se tomar partido de que estas não são mais o fato em si. A memória se afasta, também com relação ao tempo, do "acontecimento real", e podemos fazer uso do caráter criativo da mesma.

A re-utilização de uma memória para criação de outra foi então experimentada. O material de base utilizado nesse momento foi o texto literário com o propósito de vivenciar, através de personagens fictícios, fantasias únicas que estabelecem uma relação também œnica entre homem e espaço vivido. Neste ponto foram feitas as primeiras experiências gráficas que exploravam as características poéticas do texto e traduziam o conto em objetos, ainda como produtos distintos, mas que levaram ao trabalho atual de tradução intersemiótica.

A temática dos textos escolhidos está ligada a uma proposta de leitura em torno da compreensão do corpo e do espaço. Ora é um corpo silenciado, ora um corpo que fala e sente, mas sempre com forte caráter expressivo, indicando sugestões de uma operação poética tradutiva. Assim como o espaço é ora ocupado pelo corpo, ora representativo por si só.

Os seguintes textos foram traduzidos em livros-objetos:
Poema Sujo (trecho), Ferreira Gullar, 1975
O afogado mais bonito do mundo, Gabriel García Márquez, 1968
Ninguém acendia as luzes, Felisberto Hernández, 1947
Primeira dor, Franz Kafka, 1922
A morte da mulher do atirador de facas, Naoya Shiga, 1913
El jardín de nubes, Alberto Ruy Sánchez, 2001
As cidades e as trocas 5, Italo Calvino, 1972

A tradução intersemiótica enfatiza a dimensão poética, justifica-se pela sua natureza icônica e fundamenta-se como metalinguagem. O sentido poético do texto é expresso pela sua materialidade na mudança de suporte.

Assim é tecida a narrativa, através do corpo e do espaço que transitam e transmutam ao longo dos contos. O corpo de carne e osso, esta estrutura com flexível armação que abriga, em seu interior, as vísceras todas, sai do Poema Sujo e chega ao pequeno povoado no Caribe, onde o afogado de proporções descomunais - o mais alto, o mais belo, o mais viril - desencadeia nos habitantes uma relação de afeto, de identificação com o morto, aquele ser que, de tão fantástico, "não lhes cabia na imaginação".

O corpo é representado, em Ninguém acendia as luzes, pelo cabelo. Com seus olhos de raposa, o narrador percorre a sala e observa toda a massa de cabelo da sobrinha, o coque das viœvas e o jovem da testa pelada. Essa maneira peculiar e obsessiva de descrever os personagens, que marca a narrativa, transfere o foco do corpo como volume, para o corpo pensante, e assim, para as angœstias de um artista que, por perfeccionismo, isolou-se do mundo, dedica-se integralmente à arte do trapézio, uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homensÓ. A agonia vivenciada pelo trapezista, sua crise existencial, prolonga-se para a exaustiva dœvida na qual o atirador de facas está imerso. O quanto ele desejava livrar-se da própria mulher? Foi por acidente que a matou? Ou não?

O corpo, então já cansado, pode ser visto ao longe, sobe até o céu com uma rede nas costas, em busca das nuvens que não aparecem, como um amante desesperado, não mede esforços para salvar seu jardim. O espaço, visto em perspectiva no Jardín de Nubes, é sondado em suas mais diversas camadas em As cidades e as trocas. Esmeraldina, com seus fossos, esgotos, vielas, escadas, ruas suspensas, pontes, bailéus, possui rotina mutante, cria-se a cada dia em si mesma. As relações humanas parecem perder-se nesse espaço labiríntico, restando assim, o espaço transitório.

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