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secao 4!

Recortes da cidade:

imagem e palavra

Joana Longman Campos Brasiliano

Vicente Gil Filho

Desde que iniciei os questionamentos acerca da melhor maneira de finalizar minha graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo tive em mente realizar uma leitura gráfica de São Paulo.

Comecei andando à pé. O espaço nos diz muito mais quando podemos percorrê-lo no sentido de vivenciá-lo mais de perto, explorando nossa percepção acústica, tátil e visual. Francesco Careri, em seu livro Walkscapes: El andar como práctica estética discute a relevância do caminhar como um instrumento de grande valia para se perceber a arquitetura do espaço, para se formular questões urbanas, para se re-significar o território. A partir dessas ideias, procurei retratar a cidade e vivenciá-la de maneira simultânea. Procurava, desta maneira, entender a questão da leitura urbana e de sua representação como parte do raciocínio arquitetônico.

A primeira dificuldade que encontrei foi entender o que a cidade me dizia: são tantos seus dizeres e tantas as minhas leituras que eu me perdia diante das múltiplas possibilidades. Quais mapas e que imagens eu formava enquanto percorria o espaço urbano?

Diz-se que a paisagem é um estado de espírito. Caminhando pela cidade percebi que a paisagem apreendida por mim estava absolutamente vinculada ao meu estado emocional. Fernando Pessoa, em uma nota preliminar do livro Cancioneiro, afirma existirem dois tipos de paisagens, a interna e a externa; e aponta a inter-relação entre elas na nossa percepção do mundo: nosso estado de alma sofre influência da paisagem que estamos vendo e também a paisagem exterior é contaminada pelo nosso estado de alma. A representação de uma realidade, portanto, relaciona-se não somente com a realidade que se apresenta aos nossos olhos, mas também com a nossa subjetividade, nossa reação a ela.

Pergunto-me então qual seria este meu estado de espírito hoje, para entender a paisagem que em mim resulta. De que maneira enxergo as formas? E através de qual desenho seria capaz de traduzi-las?

Procuro neste trabalho esboçar uma forma de entendimento possível da cidade diante de uma situação onde encontram-se latentes sentimentos como o do desamparo, da solidão, do abandono, da vulnerabilidade, da fragilidade. Sentimentos estes que repercutem no meu entender a cidade, no meu me-entender. Trata-se de um estado de espírito no qual a minha intimidade parece transbordar e essa relação entre estar transbordante das mais diversas sensações e lembranças numa cidade que se revela ora absolutamente fria, indiferente, anônima e áspera, ora acolhedora, macia e cheia de lembranças acalentadoras, interessou-me neste momento e configurou-se como o tema central do meu trabalho final de graduação.

À altura de concluir este trabalho, tenho para mim que ele não deve se apresentar como uma tese, nem como uma ideia a ser defendida ou comprovada. Muito pelo contrário, este trabalho se desenvolve no sentido de um experimento preliminar, um balbucio, uma primeira palavra. Ele se apresenta como um ensaio, tal qual nos define Jean Starobinski, em seu discurso de agradecimento pelo Prêmio Europeu do Ensaio Charles Veilon em 1982: um trabalho que permanece em aberto, que não se fecha em si mesmo; um trabalho arriscado, insubordinado, imprevisível e perigosamente pessoal. Trata-se, assim, de um trabalho onde a relação entre a objetividade e a subjetividade é insolúvel: “O que é posto à prova, principalmente, é o poder de ensaiar e experimentar, a faculdade de julgar e observar. Para satisfazer plenamente a lei do ensaio, convém que o ‘ensaista’ ensaie a si próprio.” (STAROBINSKI:2011:6).

Procuro neste trabalho ensaiar a mim mesma.

O trabalho consiste num livro composto por imagens e textos: fotografias tiradas por mim durante os três meses que antecedem a presente data, nas cidades de São Paulo e Santos; textos livres que relatam alguma vivência na cidade de São Paulo.

As imagens estão dispostas em duas “camadas”, sendo que as imagens que se encontram na parte externa são recortes das imagens que se encontram na parte de dentro. Ambas são imagens fotográficas e que carregam consigo a noção de limite: são recortes de uma realidade maior contidas em um determinado enquadramento. A seleção e a disposição das imagens que compõem este ensaio relacionam-se com o princípio cinematográfico da montagem: constituem uma narrativa que se estabelece a partir de suas combinações. Cada imagem isolada corresponde a um determinado recorte da um plano maior e, ao associarmos umas às outras, podemos intuir um valor de outra dimensão, um determinado clima, um determinado conceito. Sierguéi Eisenstein em O princípio cinematográfico e o ideograma, aponta a relação existente entre a montagem cinematográfica e a escrita japonesa, no sentido de que uma sóbria combinação de símbolos pode resultar numa enxuta definição de conceitos abstratos. Assim o é na montagem cinematográfica, na qual a combinação de dois ou três pormenores de tipo material produz uma representação perfeitamente acabada de uma outra espécie – a psicológica. Eisenstein descreve a prática cinematográfica como a desintegração de um acontecimento em diversos planos que, ao serem montados, obedecem à subjetividade do montador, refletindo o seu ponto de vista; desta forma, a montagem pode conter proporções distorcidas e incongruências monstruosas. Eisenstein argumenta que para se traduzir em um conceito, a montagem deve se basear no conflito, na colisão entre dois pedaços, um em oposição ao outro: conflito de direções gráficas, de escalas, de volumes, de massas, de profundidades, etc. Valho-me das ideias de Eisenstein para tentar criar não tanto um conceito, mas um clima a partir da sequência das imagens neste trabalho. Um clima que oscila entre o dentro e o fora, entre o público e o privado, entre o macio e o áspero, entre a fragilidade e a brutalidade, entre a íntimo e o impessoal.

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