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secao 4!

ARQUITETURA, ENTRE ARQUITETOS E COMUNS

RICARDO LOPES STANZANI

LUIZ RECAMÁN

Este trabalho parte da igualdade entre os homens e seus ofícios para deslocar o arquiteto de seu posto privilegiado enquanto artífice de uma arte maior e trazê-lo de volta junto ao homem comum. Duas características da arquitetura foram tidas como intrínsecas: sua concretude e seu caráter público. Foram distinguidos dois tipos de apreciação arquitetônica: a distraída, base¬ada na percepção vulgar, e a atenta, baseada na percepção imaginativa. Em seguida foram levantados como hipótese avaliativa da arquitetura três tópicos: a tectônica (ou a potência da arqui¬tetura de explicitar a lógica constitutiva da cultura material), o estímulo sensível e a abertura da obra (enquanto o inverso do Gesamtkunstwerk). Isso indica certa objetividade na discussão estética da arquitetura. Para admitirmos essa possibilidade, vale refazer o trajeto de Scruton em seu texto conclusivo “Arquitetura e moralidade”.

Haveria um certo e errado em arquitetura? Este tipo de questionamento frequentemente está condenado à negativa, acompanhada da confiança de que o gosto é subjetivo. E em certo sentido é, já que parte essencialmente de uma experiência individual. Mas por outro é objetivo, pois ao contrário do ditado popular, a verdade é que em geral acreditamos ser possível defender o nos¬so gosto com argumentos, ao menos até certo ponto.

Na afirmação de que a apreciação estética (da arquitetura) é objetiva temos uma história rica em arquitetos pretendendo estabelecer ou descobrir regras e leis universais da prática arquitetônica. Por outro lado, a facilidade com que essas leis são derrubadas nos sugere o oposto, de que a apreciação estética é subjetiva e portanto limita-se ao âmbito da experiência indivi¬dual. Essa sugestão deve ser deixada de lado se quisermos escapar ao binarismo objetividade e subjetividade, já que, como vimos, ambos empenham papéis na conformação do gosto. Para situar melhor esse entre, Scruton faz um paralelo com as apreciações morais:

"Em algumas perspectivas, a moralidade consiste num conjunto de regras de conduta e o problema filosófico é simplesmente como se podem justificar essas regras. Esta abordagem legalista da moralidade não registra muito exatamente as reflexões reais dos homens morais, a maioria dos quais teria relutância em especificar regras absolutas de conduta, mesmo que não encontrem dificuldade em reconhecer atos que merecem louvor ou censura. E a capacidade de reconhecer as ações corretas provém em parte de uma capacidade para reconhecer os bons homens – para reconhecer a virtude moral em ação, para reconhecer que uma determinada ação exprime disposições que se devem imitar ou elogiar, disposições pelas quais nos “entusiasmamos” à maneira característica unicamente de seres morais. Se este pensamento é verdadeiro – e há certamente desde Aristóteles uma longa tradição de filósofos morais que com ele concordaram – podemos então compreender o que está certo ou errado não porque possuímos um catálogo de regras, mas porque compreendemos os motivos e os sentimentos do homem de virtude. Ao compreendermos o homem virtuoso, podemos, quando surge a ocasião, imaginar o que ele faria. Mas o preceito subsequente, mesmo alcançado assim indiretamente e em desafio de qualquer lei universal, pode ser ainda objetivo. Será tão objetivo como a noção de virtude de que provém e, se se pode mostrar (como Aristóteles tentou mostrar) que o nosso ideal de virtude não é arbitrário, mas, pelo contrário, nos é imposto pela própria natureza da escolha racional, todas as apreciações morais são, então, em certa medida, objetivas. Todas as apreciações morais derivam a sua validade do raciocínio que nenhum homem pode razoavelmente rejeitar."

No trecho citado fica exposto o ponto crítico da relação binária entre objetividade e subjetividade: sua falta de relação com a verdade. Os arquitetos modernos podem, na nossa história da arquitetura, ser associados àqueles que buscaram desvelar ou instituir leis e regras universais do fazer arquitetônico. Cometeram assim uma pequena confusão: não buscavam objetividade, mas sim verdade. Ao construir eles ignoraram o possível diálogo com os outros homens, negando as tradições e preferindo pela busca de deus – e não há dúvidas de que muitos arquitetos se viam em uma verdadeira missão sacerdotal.

No outro extremo, os arquitetos pós-modernos tentaram, a partir do desfacelamento das “verdades” modernas, intuir a subjetividade total à qual a arquitetura estaria condenada. Surge a figura do herege, aquele gênio que não fará mais do que dar a vida para provar que não há autoridade senão a do indivíduo. A única pesquisa se dá no âmbito pessoal, com motivações estritamente pessoais. A vida do autor começa a fazer parte da obra e logo não temos sacerdotes, mas celebridades.

Seja na afirmação ou na negação da verdade, boa parte dos arquitetos deixou de dialogar com o outro. Não entenderam que as tradições não existem por alguma pretensão à verdade, mas graças à possibilidade de consenso entre os homens. Ante a riqueza de uma construção coletiva ao longo do tempo acumulada enquanto tradição, aquilo que os arquitetos oferecem enquanto uma nova arquitetura é muito pouco - e basta lembrarmos de Pruitt-Igoe para vermos que às vezes pode ser pouco o suficiente para sequer se sustentar.

Tão mais interessante se torna a arquitetura quanto reconhecemos seu potencial didático: o de retirar a percepção da vulgaridade e torná-la atenta. Por outro lado, sua perenidade torna qualquer “chamada” mais pretensiosa em sinais de uma arquite¬tura estridente. Se, no entanto, negarmos uma diferença de partida entre arquitetura e simples construção, é possível alcançar uma arquitetura que em vez de se isolar de seu contexto pela excepcionalidade, torna-se contagiosa pela banalidade. Uma construção aparentemente banal que consiga se apresentar enquanto poesia não estará se relegando à exceção, mas antes promovendo todas as construções banais enquanto possibilidade de apreciação estética. Reconhecendo a arte em todos os ofícios humanos, reconhece-se qualquer ofício enquanto possível de apreciação estética: a arquitetura não necessariamente se limita a estimular a percepção atenta à sua disciplina específica, mas amplia a atenção perante a cultura material como um todo.

Considerando o caráter habitável da arquitetura, deve-se compreender que para além de nos induzir a uma percepção atenta sobre a matéria, a arquitetura pode conformar a vida de diferentes modos, tornando a percepção atenta à própria existência. O século XX foi excepcionalmente prolífico em experimentação sobre modos de viver - situação em que quase sempre a mudança para um novo estilo de vida se deu de modo involuntário. Foi muitas vezes devastador, já que o positivismo era causa maior do que qualquer tradição ou costume.

Não há dúvidas sobre o quão nociva pode ser as conformações da arquitetura no cotidiano, mas talvez consigamos, depois de percorrido o trajeto deste trabalho, vislumbrar uma outra relação: a de reafirmação. A reafirmação da igualdade, a reafirmação da possibilidade de consenso entre os homens, a reafirmação de nosso pertencimento ao mundo, o habitar. Enquanto suporte de identidade e memória a arquitetura pode ser capaz de promover para nós mesmos o nosso melhor.

Sua resistência ao tempo, seu caráter público, sua vivência cotidiana: tudo indica como apropriado uma arquitetura serena, da vida de todos os dias. No entanto, se uma estética supõe uma moral, o contrário não é válido. Não há tradução possível a partir das considerações feitas. Cabe então, como sempre foi, negociarmos o comum desejável.

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