logofau
logocatfg
secao 4!

Lugares palavras:

mitos, memórias e identidades do bairro do Bexiga

Marina Andrade Leonardi

Ana Lucia Duarte Lanna

Se a noção de bairro é empregada cotidianamente, sobretudo como referncia para situar uma determinada localização, tanto do ponto de vista científico quanto do ponto de vista político o bairro representa uma construção em torno da qual se articulam debates teóricos e problemas operacionais.

Na academia, a noção de bairro é tratada principalmente por disciplinas das ciências humanas, para as quais ela guarda um estatuto ambíguo: embora presente em numerosos trabalhos, o bairro nunca aparece como um conceito claramente definido. Mais do que um objeto de estudo propriamente dito, o bairro é frequentemente utilizado como "entrada", "unidade de observação" ou "escala de análise" para tratar de uma larga variedade de questões (AUTHIER et al., 2007: 15).

Por não ser um objeto de estudo específico de nenhuma disciplina, o bairro constitui um lugar privilegiado de trocas entre saberes. No entanto, se existem confluncias nas abordagens das diferentes ciências sobre o bairro, os modos de se aproximar desse terreno de estudo variam de uma disciplina para outra. Mudam as metodologias utilizadas mas também, e sobretudo, as problemáticas nas quais o bairro se inscreve.

Na arquitetura e urbanismo, assim como nas ciências humanas, o bairro costuma ser adotado mais como recorte espacial - escala de análise e de intervenção- do que como problemática de estudo em si. Ao mesmo tempo, os saberes da arquitetura e do urbanismo podem enriquecer a reflexão sobre o bairro não só do ponto de vista formal e funcional, como também do ponto de vista social, a partir do estudo da apropriação dos espaos livres, das práticas cotidianas, dos arranjos coletivos, da construção de identidades e de representações. Entretanto, cabe indagar: em relação às abordagens das ciências humanas, que especificidades tem o olhar dos arquitetos urbanistas sobre o bairro? Que elementos de reflexão esse olhar tem a acrescentar? O que é o bairro "dos arquitetos"?

Este trabalho é uma possível resposta a essas questões. Trata-se de um exercício de percepção do espao do bairro como lugar das práticas cotidianas de seus usuários - práticas que podem ser notadas e interpretadas tanto a partir das marcas que elas deixam no espaço, quanto a partir dos discursos construídos sobre o espao.

O título lugares palavras carrega, assim, duas dimensões importantes que procurei trabalhar de forma articulada. Imbricados, espao vivido e o espao falado exprimem distintos significados, formas de apropriação, mitos, memórias diversas, identidades em disputa. As práticas sociais e culturais da população do Bexiga foram apreendidas e estudadas em sua dimensão concreta (no modo com que elas tangem o espao) e em sua dimensão discursiva (no modo como se inscrevem nos discursos sobre o espao).

No desenvolvimento da pesquisa, optei por explorar possibilidades de análise que não me conduziriam necessariamente à realização de um projeto. Liberando-me da etapa propositiva, pude dedicar todo o tempo da pesquisa a um exercício contínuo de leitura do bairro. Além disso, pude explorar mecanismos de aproximação e de questionamento distintos daqueles que normalmente empregamos nos exercícios curriculares do curso de arquitetura e urbanismo. Privilegiei os aspectos qualitativos em relação aos quantitativos, guiando-me pela formulação de Henri Lefebvre (apud DE CERTEAU et al., 2010: 20) segundo a qual o bairro é "uma porta de entrada e de saída entre espaos qualificados e o espao quantificado."

A aproximação se deu a partir de idas a campo regulares e de um contato repetido com alguns moradores. A vivncia do espao ofereceu um diferencial fundamental, senão imprescindível, para a pesquisa, pois permitiu apreender elementos qualitativos que deram nuance e profundidade aos dados coletados por outros meios. Ela me possibilitou espacializar esses dados, isto é, reconhecer a maneira com que eles se expressavam no espao.

Angelo Bucci (2010: 132) sugere que, a partir do vínculo com o lugar, é possível reconstruir um sentido de cidade. Entretanto, no intuito de "chegar ao projeto", temos muitas vezes negligeciado um olhar mais detido sobre os lugares nos quais intervimos. Na fau, aprendemos um processo projetual que vai do diagnóstico à proposição: a etapa inicial de "análise do entorno" tem como objetivo reunir elementos mínimos que norteiem a concepção do projeto. Dessa forma, acabamos muitas vezes por limitar o campo de reflexão que a arquitetura e o urbanismo comportam e do qual eles não podem prescindir. Minha opção por não projetar se justifica pela convicção de que a leitura que precede a intervenção é tão ou mais importante do que a própria intervenção. O arquiteto, muitas vezes, é estrangeiro nos lugares em que se propõe a intervir. Integrar-se nesses lugares me parece uma condição fundamental para intervir melhor.

Detendo-me sobre lugares e palavras, identifiquei trs questões que me parecem centrais para entender o Bexiga: a mitologia da qual o bairro é objeto; as memórias que essa mitologia integra ou omite; e as identidades que, visíveis ou não nos discursos sobre o bairro, coexistem e deixam suas marcas no espao.

As imagens mitológicas do italiano, do negro e do bomio remetem a identidades, memórias e práticas que não operam para os migrantes nordestinos que constituem uma parcela expressiva dos atuais habitantes do Bexiga. A constatação dessa incoerncia foi o ponto de partida para a observação do bairro. Ao perceber o processo de invisibilização dos nordestinos, considerei que seria importante me deter sobre os seus lugares no bairro - aqueles lugares que, mais do que um mero cenário de suas vidas, são também produtos de sua prática social. Lugares, portanto, em que se configura a visibilidade desse grupo: a rua, os bares, os churrasquinhos, as pizzarias delivery, as igrejas, as pensões.

Contrapondo as representações coletivas a um registro direto das práticas cotidianas, procurei revelar as distorões, omissões e entrelinhas do discurso estereotipado. Isso permitiria reconhecer e dar lugar à multiplicidade, caráter essencial de um Bexiga que vai bem além do mito.

Trabalho disponível em: http://issuu.com/marinaandradeleonardi/docs/lugares_palavras_marina_leonardi

slideshow image

If you can see this, then your browser cannot display the slideshow text.

 

topo